Encontro com o Pastor

Sei em quem acreditei

Na recente festa de São Pedro e São Paulo, prestei atenção especial à segunda Carta de São Paulo a Timóteo, da qual foi lida uma passagem na solenidade litúrgica dos dois Apóstolos. Paulo, preso em Roma, já condenado à morte e à espera da execução da pena capital, não cessa de evangelizar. Escreve ao seu jovem colaborador Timóteo e o exorta a permanecer firme na fé e fiel à sã doutrina e à missão.

Consciente da proximidade de seu martírio, Paulo está em paz e se confia inteiramente “ao Senhor, justo juiz”, podendo afirmar com serena lucidez: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé” (2Tm 4,7). Nesse sentido, também exorta a Timóteo: “Proclama a Palavra, insiste oportuna e inoportunamente, convence, repreende, exorta com toda paciência e doutrina” (4,2). Já naquele início do Cristianismo, havia vários problemas na Igreja, como permitem entrever os Atos dos Apóstolos e também as Cartas Apostólicas e o Apocalipse. O próprio Jesus já havia advertido que seria assim e, por isso, na sua despedida, após a última Ceia, insistiu no “mandamento novo” do amor fraterno e rezou ao Pai pela unidade entre os discípulos (cf. Jo 17,21-23). Sabia que eles eram humanos e frágeis, sujeitos às tentações de qualquer pessoa.

A Igreja sempre teve de enfrentar intrigas internas, falsos mestres, corruptos e aproveitadores da boa-fé do povo, formação de grupos dissidentes, divisões internas, desânimo, orgulhos e vaidades feridas, imoralidades, discordâncias em relação ao ensinamento da fé, até em questões fundamentais, como a ressurreição de Cristo e sua natureza humana e divina, e abandono da fé. De todas essas coisas a Igreja não está isenta, pois é formada de pessoas humanas. Já no início do caminhar da Igreja, Paulo preveniu Timóteo: “Vai chegar um tempo em que muitos não suportarão a sã doutrina e se cercarão de mestres conforme seus desejos, quando sentem coceira no ouvido e, desviando o ouvido da verdade, voltam-se para as fábulas” (2Tm 4,3-4).

Como se explica, então, que a Igreja ainda não tenha sucumbido às suas próprias fragilidades, como já foi muitas vezes profetizado por seus inimigos e por quem não leva em conta a natureza profunda da mesma Igreja? A resposta está nisso: a Igreja não se edifica sobre si mesma, nem sobre algum fundamento que ela tenha encontrado por uma espécie de pacto social. Ela se edifica sobre a rocha firme da Palavra de Deus e conta com a assistência constante do Espírito Santo, que a conduz na missão e na contínua conversão. A Igreja não é, simplesmente, uma organização humana, que conta apenas com suas próprias forças. Membros da Igreja e até algum de seus ministros e dirigentes podem falhar e errar, mas a Igreja é exortada constantemente a se voltar para o “Norte” da Palavra de Deus e para a rocha da pessoa de Jesus Cristo, para não vacilar nem perder o seu rumo. Não fosse assim, a Igreja, certamente, já teria deixado de existir.

Por isso, Paulo, já no final de sua vida, pode estar sereno, apesar de ter uma série de queixas a fazer, pois ele também é humano e sente humanamente o abandono e até a traição de amigos e colaboradores, justamente quando mais precisa deles (cf. 2Tm 4,9-17). Sabe que a obra, pela qual dedicou o melhor de suas energias, não é dele, mas de Cristo e de Deus e não irá sucumbir: “Sei em quem acreditei” (2Tm 1,12). Fez a sua parte e deixa na mão de Deus a continuidade e o futuro da evangelização. E, assim, vem acontecendo ao longo de 2 mil anos de história da Igreja. Houve falhas, mas a Igreja não se abalou e achou sempre de novo o rumo. Os grandes pregadores e servidores do Evangelho, assim como os humildes e fiéis discípulos do Senhor, fazem a sua parte e saem de cena. Outros assumem seu lugar e a obra da Igreja segue em frente, edificada sobre a mesma rocha inabalável, que é somente Cristo, orientada pelo “Norte” seguro da Palavra de Deus.

Hoje, está em nossas mãos a responsabilidade de continuar a missão de Pedro, Paulo, Timóteo, Áquila e Priscila, Lourenço, Agostinho, Bento, Tomás, Francisco e Clara, Catarina, Inácio e Anchieta, Teresa e Teresinha, Galvão, Paulina e Assunta. E de tantos que creram e realizaram sua parte na missão.

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 03/07/2019

 

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