Opinião

Amor, Justiça e Direito não se misturam?

São conceitos clássicos de Justiça que a cada um deve ser atribuído o que é seu e que o mal praticado deve ser retribuído com uma pena, a fim de se manter o equilíbrio no meio social.

Por sua vez, a palavra amor contempla inúmeras realidades, nem sempre análogas ou sequer complementares, como quando se diz matar por amor. De todo modo, o amor que aqui se quer tratar é aquele de que falava Jesus aos seus discípulos: o amor ao próximo, seja quem for, mesmo que seja seu inimigo, seu ofensor. É esse o amor que abunda nos escritos neotestamentários e que é descrito com a palavra “ágape”. Esse amor, de retribuição, não tem nada.

A lógica do amor se inverteu com o advento de Jesus Cristo, pois a importância dada à palavra “ágape” era muito rara nos escritos gregos, que preferiam o “eros”, adorado como deus. Isto indica uma novidade no Cristianismo, algo que lhe é essencial, como mostrou Bento XVI na Encíclica Deus Caritas Est (2005). Mas, como conciliar amor e justiça se um é gratuidade e a outra retribuição? Para Bento XVI, não se pode falar de amor sem antes falar de justiça, porque não há como dar ao outro algo a mais, se ele está privado até mesmo do que é seu.

Portanto, a justiça é o primeiro passo do amor. Além disso, o mandamento de amar até o inimigo não consiste em ser conivente com o mal, segundo uma falsa interpretação do “oferecer a outra face”, como afirmou ele em uma de suas pregações do Ângelus em 2007. E por qual razão Jesus pede para amar os próprios inimigos, um amor que excede as capacidades humanas, pergunta-se o Pontífice Emérito. É que Jesus sabia que no mundo existem violência demais, injustiça demais, situações que não podem ser solucionadas de outro modo a não ser com bondade demais, amor demais.

O amor ao inimigo é a magna carta da não violência cristã. Trata-se de quebrar a corrente do mal e da injustiça, porque se a justiça induz a dar a cada um o que é seu, o amor induz a dar mais, a dar de si próprio: de seu tempo, de seu ouvido, de suas forças, de seu trabalho, de sua palavra, de sua compreensão, de seus recursos financeiros.

Pois bem, interessa ao Direito Brasileiro constituir uma sociedade justa, fraterna e pacífica, fundamentada na dignidade da pessoa humana, conforme objetivos insculpidos na Constituição Federal. Nesse cenário, o amor atua como um fator de aperfeiçoamento da justiça, e esta é sua função social: evitar que ela seja compreendida como o “mercado” da equivalência dos direitos e seja compreendida como o liame de fraternidade em que o outro é para mim um igual, seja em qual condição se encontrar. O amor contagia, o bem praticado gera a prática do bem, resultando no bem de todos. Já estão em pleno vigor novas formas de tratar os conflitos no Judiciário Brasileiro, como a Justiça Restaurativa e a Mediação, que olham os litígios como fruto do sofrimento humano, verdadeiras feridas abertas, e assim os tratam. É que o homem tem sede não apenas de justiça, mas de amor!

Contudo, a não violência não é mera estratégia, mas um modo de existir no mundo, maneira de ser de quem está convicto do amor de Deus e não tem medo de enfrentar o mal somente com as armas do amor e da verdade. Assim, o ágape parte da compaixão e resulta em atitudes misericordiosas para com o próximo e até para com o inimigo. Portanto, a reconciliação entre amor e justiça evita que esta se torne apenas uma regra utilitarista e descomprometida com o bem do outro, para que o Direito não se torne palco de jogo de interesses egoístas, de revanchismo, de vingança e da mera aplicação fria da lei.

Daniela Jorge Milani é mestre e doutoranda em Filosofia do Direito na PUC-SP e advogada em São Paulo.
 

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