Espiritualidade

Religião, política e responsabilidade social (II)

A fé não é uma espécie de garantia mística ou de proteção para quem acredita, muito menos pode ser usada com forma de manipulação da vontade das pessoas. A história oferece exemplos de indivíduos que tentaram associar-se a um “deus”, curvando-se, mas apenas para atingir seus objetivos. Esses acontecimentos, no entanto, não servem para justificar que a fé e as coisas do mundo caminham separadas, mas servem para afirmar a necessidade de abrir os olhos e os ouvidos e não deixar se enganar pelos falsos ídolos de hoje.

A Sagrada Escritura tem diversas formas de recontar os acontecimentos da vida do povo de Deus. Algumas vezes, fala de sonhos que apontam uma relação com a realidade e a forma misteriosa como Deus age na história. O livro do profeta Daniel é um desses escritos e, no segundo capítulo, relata o sonho do rei Nabucodonosor. No sonho, o rei viu a imagem de uma grande estátua que tinha a cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de bronze, as pernas de ferro e os pés eram parte de ferro e parte de barro. No sonho, tudo foi destruído por uma pedra, começando pelos pés.

Na intepretação do sonho, Daniel vê a sucessão dos reinos e sua força política, representada pelos metais. Um após o outro, cada reino passa, deixando sua marca, e no final o último reino mostra a fragilidade que é comum a todos, os pés de barro. Embora o metal tenha a sua resistência, a fraqueza do barro é suficiente para colocar tudo abaixo. O barro recorda a condição humana e como nenhuma iniciativa ou projeto humano está imune da corrupção. Então, será impossível construir uma sociedade mais justa e fraterna? 

O profeta chama a atenção para a mistura por casamentos e faz uma alusão ao ferro e ao barro, que não se fundem. Na busca pela manutenção do poder, lança-se mão de alianças, que são como casamentos, por puro jogo de interesses, que têm a duração e a extensão da conveniência, mas terminam com um golpe. Não poucas vezes, vemos a repetição das alianças na política, e tudo isso tendo como justificativa o bem do povo. O que pensar sobre isso?

Daniel não escondeu a verdade e, com risco da própria vida, ele assumiu seu papel profético naquele contexto social e político. Falando ao rei, ele denunciou o equívoco de alguém que tinha assumido ares de um semideus, sem erros e sem enganos. Falando ao povo, ele apontou sinais de esperança para o futuro. O verdadeiro profeta só pode falar da realidade porque antes de tudo ele está ligado e comprometido com Deus, e seu discernimento não nasce de preferências ideológicas, de paixões humanas e nem de interesses viciados. Ainda temos profetas como Daniel? 

Na conclusão da sua interpretação, Daniel afirma que a pedra que rolou vai se tornar uma grande montanha, que ocupará a terra inteira. Esse último sinal aponta para o futuro e para a intervenção de Deus, quando, pela sua justiça e pela verdade, Ele vai promover a plena libertação do povo, e seu Reino não terá fim. Depois da interpretação, o rei ficou profundamente grato ao profeta, reconheceu que Deus é o Senhor de todas as coisas e fez de Daniel seu conselheiro. 

Diante disso, surge uma pergunta: devemos apenas esperar pelos acontecimentos ou precisamos nos envolver com eles? A resposta para esta e outras perguntas depende de como a nossa fé está integrada e de como a sabedoria da Palavra de Deus influencia o conjunto das nossas decisões.

O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, classifica como “obscuro mundanismo” as iniciativas que escondem o fascínio pelo poder e a vanglória. Uma consequência grave desse tipo de atitude é a rejeição a questionamentos que apontam erros e falhas. No sonho do rei, os diferentes metais representavam a sucessão dos reinos; como ninguém se preocupou em corrigir o que estava errado, o que teve início com o ouro, terminou no barro. A capacidade de fazer uma autocritica é fundamental para a conversão pessoal e também é importante para o progresso social, além de ser um elemento que deve motivar as escolhas que fazemos. 

Uma outra questão é a forma misteriosa como Deus age na história e como os profetas falam ao povo sobre isso. O profeta Jeremias faz a seguinte afirmativa: “Construí casas e nelas morai, plantai pomares e comei seus frutos. Procurai a paz da cidade para onde vos deportei e rogai por ela ao Senhor, porque a sua paz será a vossa paz” (Jr 29,5.7). A confiança na ação de Deus exige do homem uma corresponsabilidade de compromisso. Portanto, sem confundir o Reino com iniciativas humanas, cabe ao povo de Deus assumir, com responsabilidade, o dever de promover a paz, a justiça e bem comum, como cidadãos livres e conscientes das suas escolhas.

 

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