Opinião

Contra o humanismo

Não é exatamente o termo do título que Robert Hugh Benson usa em sua magistral descrição de um mundo política, social e tecnologicamente desenvolvido, entregue nas mãos do anticristo. Em “O Senhor do Mundo”, romance de 1907, esse padre convertido do anglicanismo, filho do bispo de Cantuária, a maior autoridade da Igreja da Inglaterra abaixo do rei, descreve um mundo em que os principais problemas da humanidade, inclusive o da paz mundial, foram resolvidos. Uma União Europeia adota alegremente a eutanásia como modo de encerrar a vida; o transporte aéreo e os meios de comunicação encurtaram as distâncias; não há mais desigualdade nem pobreza. É a vitória do “humanitarismo”, como Benson chama a visão dominante em seu futuro distópico. Só há um último inimigo a ser derrotado: a Igreja Católica. Só ela não se dobra ao benévolo e benemerente anticristo.

O livro parece presciente do projeto humanista que ganha espaço a cada dia no mundo e é essa qualidade que fez o Papa Francisco recomendar, já por duas vezes durante seu pontificado, sua leitura. Não vou dar spoiler, mas o livro termina com algo que parece ter desaparecido da perspectiva mesmo nos meios católicos: a disputa final entre Deus e seus inimigos como ponto final da história. Benson apontava, já em 1907, que essa luta espiritual fora esquecida. O Cristianismo protestante liberal já tomara a Igreja da Inglaterra que ele decidiu abandonar, para escândalo do país inteiro, naquele tempo em que ingleses levavam minimamente a sério sua igreja. Esse cristianismo de resultados, segundo o qual o que importa no serviço prestado aos pobres, por exemplo, é menos a recompensa prometida por Jesus do que o bem-estar do pobre, tornou-se dominante. E, no fundo, tornou irrelevante a confiança em um Deus transcendente: o humanismo dominante é ateu, ou agnóstico, ou tão ao gosto do freguês quanto a sexualidade contemporânea, também ela livre de qualquer bússola transcendental.

“Você não entende que tudo o que Jesus Cristo prometeu se tornou verdade, embora de outro modo?”, diz Mabel, uma personagem de “O Senhor do Mundo” para sua sogra, que, no fim da vida, quer se confessar, comungar e voltar à Igreja. “O Reino de Deus realmente começou, mas agora nós sabemos quem é Deus. Você disse que quer o perdão dos pecados; bem, você tem o perdão, todos temos, porque não há mais isso de pecado, apenas crime. E, depois, a Comunhão. Você acreditava que ela fazia você participante de Deus...; bem, todos nós somos participantes da vida de Deus, porque somos todos humanos.” Para o humanitarianismo da ficção, assim como para o humanismo que rege o mundo hoje, o homem se tornou Deus, não o contrário. Não o que a Igreja sempre ensinou a respeito da encarnação de Jesus.

O Cardeal Francis George, que foi Arcebispo de Chicago, disse certa vez que gostaria de conversar com Francisco sobre a convicção que o Papa parecia ter de que o anticristo já vive entre nós e, portanto, tinha pressa. “Eu gostaria de saber o que ele sabe sobre isso”, disse George, que morreu em 2015, aparentemente sem ter tido tal conversa. Ler “O Senhor do Mundo”, como recomendou o Papa, talvez seja parte dela.

Marcelo Cavallari é escritor, tradutor e jornalista especializado em assuntos internacionais. Traduziu “O Livro da Vida” de Santa Teresa D’Ávila, para a Companhia das Letras e escreveu “Catolicismo”, para a Editora Bella.

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