Cultura

Contra os valores

São Francisco dizia ter imenso respeito pelos padres e bispos, porque eles podiam consagrar a hóstia na missa. De resto, na visão do Santo, eles mereciam tanto respeito quanto qualquer mortal. À dignidade de seus cargos, o Santo dedicava o mesmo respeito que à dos barões, reis, concidadãos de Assis etc. 
Uma recente pesquisa do Pew Institute, dos Estados Unidos, revelou que 69% dos católicos norte-americanos não acreditam na presença real de Jesus Cristo nas espécies do pão e do vinho  consagrados. A pesquisa se refere aos norte-americanos, mas não é de crer que eles estejam em pior situação do que os católicos do resto do mundo. Apenas contam melhor. Juntem-se os dois fatos –  o de que os membros da hierarquia da Igreja derivam sua importância da faculdade de consagrar a hóstia e o de que a maioria dos católicos não crê mais nessa consagração –  e fica fácil entender por que a Igreja se tornou, na mente de muitos católicos, pouco mais do que uma entidade de promoção humana. Ou do planeta: plantas, animais e minerais inclusive. Se não há a presença real de Cristo, só o que importa são o que um dia se chamou de obras de caridade e hoje conta com nomes abstratos como ação social, engajamento político, sustentabilidade, inculturação etc. 
Assim, explica-se uma concepção de missão muito corrente hoje que ignora a ordem de Jesus Ressuscitado: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi” (Mt 28,19). “Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado” (Mc 16,15) Muito do que se considera missão hoje julga mais importante salvar vidas do que salvar almas. Preservar culturas do que semear a Palavra de Deus.
São José de Anchieta, que, como jesuíta, ia longe no que se chamaria hoje inculturação, usava a proximidade que obteve com os índios para pregar-lhes a Boa-Nova de Jesus. Aprendeu a falar a língua dos gentios, mas não se acanhava de pô-la, em suas peças teatrais, na boca dos demônios. Para Anchieta, a cultura, no sentido científico que a Antropologia resolveu dar ao termo, não era um valor em si. Cultura, afinal de contas, se refere, pela etimologia e pela história da palavra, tanto ao que se cultiva na terra quanto ao que se cultua no céu ou debaixo da terra. Os cristãos, obedecendo a ordem de ensinar o que Jesus fez e disse às nações, sempre tiveram que separar o joio do trigo nas culturas pagãs com que se depararam: gregos, romanos, germânicos, eslavos, africanos, asiáticos e americanos nativos.
Para o ethos do Catolicismo que herdamos do século XX, a presença real de Jesus Cristo na Eucaristia, no fundo, não importa. E não importa porque se desenvolveu uma teologia baseada na convicção de que o homem moderno, com sua visão definida pela triunfante eficácia da indústria tecnológica possibilitada pela ciência, não pode nem precisa mais acreditar em milagres. Deixa-se condescendentemente a crença em milagres – e a consagração da hóstia é o maior, mais cotidiano e mais acessível deles –  para o povo comum. O pensamento católico contemporâneo, infelizmente, pensa cada vez menos sobre o que não é deste mundo.
Evidentemente, diante do resultado da pesquisa do Pew Institute, bispos norte-americanos se apressaram em assumir a culpa pela situação, atribuindo-a à falta de formação dos fiéis. Mas qualquer pessoa que tenha contato com qualquer instância de ensino católica de qualquer nível sabe que pouco se fala de qualquer coisa que não sejam os “valores (abstratos, pois) do Evangelho” na formação dos fiéis. Há décadas. Só que a presença real – assim como a Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus – não é um valor abstrato. É um fato.

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