Fé e Cidadania

Perspectiva da misericórdia

Em que propriamente deve consistir uma perspectiva da misericórdia que possa auxiliar e orientar a construção de uma cultura da misericórdia na Igreja e no mundo, desde o coração do Evangelho? Santa Teresa do Menino Jesus oferece-nos uma sublime indicação: “A mim, Ele deu sua infinita misericórdia e é por meio dela que contemplo e adoro as outras perfeições divinas!...” (Manuscrito A, Obras Completas, p. 162, Paulus, 2002; os grifos são do original). Esse olhar de Teresinha faz iluminar a centralidade da misericórdia no mistério da nossa fé pascal e eucarística, nas nossas celebrações sacramentais, na vida que se torna glória para Deus e na oração, ou seja, no mistério acreditado, celebrado e vivido (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2558). 

A transversalidade da misericórdia como que constitui a perspectiva, por excelência, a guiar e promover a tarefa da nova evangelização. Com efeito, abre-se para a Igreja no “início do novo milênio” uma perspectiva temporal, relativa ao tempo da misericórdia, já que o mistério pascal – interpretado por São João Paulo II como mistério da divina misericórdia (cf. Dives in Misericordia, 7) – “está situado no centro do mistério do tempo” (Novo Millennio Ineunte, 35); portanto, torna-se inexorável que a Igreja “em saída” se oriente, em primeiro lugar, pela perspectiva do tempo da misericórdia. Isso em conexão com o culto da misericórdia na oitava da Páscoa (lex orandi, lex credendi): “A misericórdia divina! Eis o dom pascal que a Igreja recebe de Cristo ressuscitado e oferece à Igreja no alvorecer do terceiro milênio” (São João Paulo II, Homilia no Domingo da Divina Misericórdia, 22 de abril de 2001).

Jesus Cristo misericordioso é o caminho para a construção de um novo humanismo cristão mediante a categoria teológica “cultura” privilegiada pelo Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, 55), o que constitui a cultura da misericórdia. Esta não é um sucedâneo da civilização do amor e sim o meio de realizá-la. Por isso, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, na sua Conclusão (CDSI 575-583), “Por uma Civilização do Amor”, afirma ser necessário “tornar a partir da fé em Cristo”, por meio de “uma firme esperança”, para “tornar a sociedade mais humana” (no plano econômico, político, cultural), pois “somente o amor (e portanto também o amor benevolente que chamamos ‘misericórdia’), é capaz de restituir o homem a si próprio”. Assim, uma Igreja “em saída” é chamada a adotar a perspectiva da misericórdia em sua tríplice dimensão – mistério, celebração e vida.

Nos desafios cotidianos, misericórdia não é comiseração, que mais humilha do que ampara o sofredor; nem assistencialismo, que retira o protagonismo do assistido; laxismo ou relativismo, que obliteram a verdade. Trata-se de uma posição de amor sincero, que reconhece as necessidades, os limites e os erros tanto nossos quanto dos outros, comprometendo-se com o bem de cada um. Onde existem sofrimento, material, psicológico ou espiritual, conflito ou violência, ali falta a misericórdia, ali ela fará a diferença. Vivemos num mundo carente da consciência da misericórdia!

O amor misericordioso, ao inspirar uma vida de autodoação e no plano natural exigir a justiça, só encontra sua plena realização na referência a Deus, e, assim como começamos, também podemos terminar, à imitação do Compêndio, com a Doutora da Igreja: “Ao entardecer desta vida, comparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que contabilizeis as minhas obras. Todas as nossas justiças têm manchas aos Vossos olhos. Quero, portanto, revestir-me da Vossa justiça e receber do Vosso amor a posse eterna de Vós mesmo...” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 583).

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