Comportamento

Imprevisto ou imprudência?

Com voo marcado às 18h no Aeroporto de Guarulhos, numa sexta-feira, o indivíduo resolve participar de uma reunião ordinária, às 15h, no centro de São Paulo. O assunto se estendeu e, às 17h, sai apressado e, debaixo de um temporal, sente que não chegará a tempo, como aconteceu de fato. Liga para Salvador (BA), avisando que ocorreu um imprevisto devido ao congestionamento na Marginal e não poderá participar do evento no qual 500 convidados o aguardam. Imprevisto?

Vivemos cercados de justificativas para darmos argumentações às nossas faltas. O trânsito, o acidente com o motoqueiro, a chuva, o trabalho... Mas seria isso realmente a verdade? Voltemos ao aeroporto. Como é possível alguém imaginar que saindo do centro de São Paulo, numa sexta-feira, às 17h, chegaria a tempo de pegar o voo das 18h!? A resposta é: impossível. A quantidade de eventos que podem ocorrer no trajeto ou simplesmente pelo fluxo de trânsito nesse dia e hora já deveria alertar a impossibilidade. Portanto, ou não aceita o convite da viagem ou não comparece à reunião. Ocorreu uma enorme imprudência em aceitar participar da reunião.

A vida é feita de escolhas que se apresentam cotidianamente. De uma escolha a outra, vamos decidindo caminhos que determinam a história de nossas vidas. Para isso, tenho de crescer no discernimento, para poder escolher com hierarquia sobre o mais importante ou mesmo imprescindível. Quando assim se esforça, fatos como o descrito ficarão menos comuns. Considerar imprevisto o que realmente é não torna ninguém irresponsável, nem aflito. Mas, quando buscamos argumentações para justificar nossa preguiça ou nossa imprudência por falta de cuidados na avaliação e programação, isso nos tira a paz.

Para tanto, é exigido um mínimo de programação no nosso comportamento a respeito de nossas tarefas. Atividades ordinárias e esporádicas. Eventos que podem ser transferidos ou inadiáveis. Participações facultativas ou obrigatórias. Consequências que só se referem à minha pessoa ou que envolvem terceiros, até mesmo uma pequena multidão. Conhecer e avaliar locais, distâncias, vias de transporte, antecedência relacionada ao compromisso, tudo isso é importante.

Não posso colocar o mesmo peso entre uma reunião da qual participo ordinariamente o ano todo e uma palestra que aceitei como convidado único, com três meses de antecedência, para dar em outra cidade. O primeiro compromisso não pode colocar em risco o segundo. É mais que justificável faltar à participação de uma reunião para poder estar com o tempo necessário para cumprir o aceite do convite da palestra. Porém, se tudo estiver em ordem, e ocorre um dilúvio que fecha o aeroporto e o meu voo fica prejudicado sem que eu possa viajar, aí teremos um imprevisto verdadeiro.

Acredito que o amigo leitor tenha entendido o recado e poderá verificar em quantas oportunidades criamos justificativas para os atrasos e faltas. A título de exemplos, poderíamos citar alguns por que todos passam: a apresentação da filha à qual prometi assistir, e coloco a culpa na chuva e no trânsito, mas, de fato, saí do trabalho quando aquela já havia iniciado; o presente que não levei à festa do amigo aniversariante, marcada três meses com antecedência, porque tive um dia corrido e não consegui comprar nada; o relatório que não saiu como deveria porque esta semana foi muito difícil em casa, com problemas de provas das crianças, que ficaram estudando, de fato, com a mãe; a visita à tia querida, doente, operada no hospital, e que recebeu alta após um mês internada, em que não a viu, porque a “vida anda uma loucura” –; estudar toda a matéria do bimestre, na noite de véspera, e vai mal na prova.

É preciso deixar de culpar os outros, as circunstâncias, as mudanças de clima, “o mundo louco”, e procurar, com serenidade, cumprir as tarefas que abarcam a nossa responsabilidade, com as melhores disposições possíveis para que se tenha um comportamento com trabalho de qualidade. Quando sentir que não é possível, lembrar que não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo; que o dia continuará tendo as mesmas 24 horas; e que nunca seremos dois. Assim diremos: “Não posso”. Saber valorizar o tempo, crescer na ordem, ter clareza quanto às prioridades e agir com discernimento fará com que se tenha maior disponibilidade de colaboração com os demais e consigo próprio, mas sempre chegaremos nos limites. Vai chover muito ainda nas tardes de sextas-feiras na Marginal, e não podemos continuar a perder voos, que não voltarão para dar uma segunda chance.

Dr. Valdir Reginato é médico de família, professor da Escola Paulista de Medicina e terapeuta familiar.
 

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