Opinião

Administração da morte

Em seu livro “Eichmann em Jerusalém, ou Ensaio sobre a Banalidade do Mal”, Hanna Arendt relata e pensa sobre o julgamento de Adolf Eichmann, o homem encarregado de administrar a Solução Final, eufemismo com que o nazismo se referia ao projeto de exterminar os judeus. Eichmann era eficiente e minucioso. Desprezava o ódio nazista contra os judeus. Sua marca era a racionalidade sem emoção aplicada à mais soturna obra de engenharia social já concebida.

Arendt observa, porém, que, no julgamento, não foi Eichmann quem ficou com o prêmio de objetividade e, sim, seu defensor, Doutor Servatius, advogado tributarista e empresarial que nunca foi nazista. Servatius “declarou que o acusado era inocente quanto às acusações relativas à sua responsabilidade pela ‘coleta de esqueletos, esterilizações, mortes por gás e questões médicas similares.’ Quando então o juiz Halevi o interrompeu: ‘Suponho que o senhor tenha cometido um lapso ao dizer que a morte por gás era uma questão médica’. Ao que Servatius respondeu: ‘Era de fato uma questão médica, uma vez que foi preparada por médicos; era uma questão de matar, e matar também é uma questão médica.’ "

Que o aborto seja uma questão de saúde pública é um dogma do credo do totalitarismo difuso em que vivemos. Uma questão médica, portanto, não uma questão moral de vida e morte de pessoas. O relatório que o Ministério da Saúde encaminhou ao Supremo Tribunal Federal como subsídio à discussão da descriminalização do aborto é um primor de abordagem objetiva: destaca o custo das complicações advindas da realização de abortos clandestinos e contabiliza até o número de mortes de mulheres por causa delas: 224 em 2016, ano mais recente sobre o qual o dado está disponível. 

Embora se declare neutro, o ministério diz que “a ilegalidade (do aborto) não impede sua prática, no entanto, afeta drasticamente o acesso a um procedimento seguro, impondo maior risco de complicações e de morte materna evitável.” “Morte materna” é um ato falho. Se não há um ser humano no ventre, como querem os defensores do aborto, não há mãe, e não há morte materna onde não há mãe. O pior erro, porém, é de raciocínio. A ilegalidade do assalto a banco também não impede que esse crime continue sendo praticado. Se fosse descriminalizado, os assaltantes eventualmente feridos também teriam “acesso a procedimento seguro” com menor risco de complicações e mortes evitáveis. E o que a criminalização do assalto visa é a mera defesa da propriedade. 

A criminalização do aborto visa um bem muito maior. Se 224 mulheres morreram em decorrência de aborto em 2016, morreram, naquele mesmo ano, segundo o que comumente está sendo divulgado, cerca de um milhão de meninas e meninas. Essas meninas e meninas são as vítimas desses crimes. O que os brasileiros decidiram proteger ao tornar crime a prática do aborto é a vida dessas meninas e meninos. O que uma mulher que procura um médico para realizar um aborto quer é matar uma menina ou um menino específico que já está ali. É a criança de que ela, por algum motivo, não tem intenção de cuidar. 

O ditador soviético Josef Stalin, outro mestre na arte de reduzir questões de vida e morte a problemas administrativos, disse uma vez que, se uma pessoa morre, é uma tragédia; se um milhão morre, é estatística. O debate não pode ser sobre estatística. Estamos diante de um milhão de tragédias por ano!
 

Marcelo Cavallari, é escritor, tradutor e jornalista especializado em assuntos internacionais. Traduziu “O Livro da Vida de Santa Teresa D’Ávila”, para a Companhia das Letras e escreveu “Catolicismo”, para a Editora Bella
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