Bioética e defesa da vida

Maconha como fator de risco em psiquiatria - uma visão científica

INTRODUÇÃO

Hoje em dia há um grande debate sobre a descriminalização e legalização da maconha. Há grupos fazendo pressão, pedindo a mudança das leis. Por que a maconha seria ilegal, se o álcool e o cigarro são substâncias legais, embora sejam prejudiciais? Afinal, do ponto de vista médico, em que a maconha é realmente nociva? Este texto pretende abordar cientificamente alguns efeitos da maconha como fator de risco em psiquiatria.

 

A MACONHA PODE CAUSAR SINTOMAS DE QUEBRA COM A REALIDADE LOGO DEPOIS DO SEU USO

Já no século XIX, o psiquiatra francês Moureau descrevia o “delirium” (ou loucura propriamente dita), como sintoma desencadeado pelo uso agudo da maconha. Com o passar do tempo, outros estudos foram confirmando as impressões de Moureau. Observou-se que a maconha desencadeava agudamente sintomas de quebra com a realidade, ou sintomas psicóticos. Ouvir vozes estranhas (alucinações), sentir-se perseguido sem motivo real (delírio persecutório), estranheza em relação a como a pessoa vê a si mesma (despersonalização) e o mundo (desrealização) são alguns dos sintomas que poderiam surgir logo após o uso da droga. Todos estes sintomas pareciam estar ligados à intoxicação com a droga, mas que cessariam poucas horas ou dias logo a seguir do uso agudo.

Portanto, via-se a maconha como uma droga de potencial nocivo menor, capaz de induzir sintomas logo após seu uso, mas incapaz de prejudicar seriamente ou de desencadear doenças e transtornos psiquiátricos graves. Com o tempo, questionou-se se estes sintomas desencadeados pela maconha ficariam presentes só poucas horas ou dias após o uso de droga, ou se os sintomas poderiam persistir a longo prazo.

A permanência dos sintomas psicóticos (de quebra com a realidade) a longo prazo i,. é, mais do que 6 meses, configura o diagnóstico de esquizofrenia. Aí se tratava de uma suspeita muito mais grave do que a quebra de realidade logo após o uso. Suspeitava-se que a droga pudesse desencadear esquizofrenia, um transtorno incurável, associado a gastos maiores que 30 bilhões de dólares por ano nos Estados Unidos. Além dos custos financeiros, sabe-se que a esquizofrenia que pode levar os acometidos a um grave comprometimento da vida social, atos violentos e tentativas de suicídio, o que tornava especialmente importante esclarecer o papel da maconha no seu desencadeamento.   

 

SERÁ QUE O USO DE MACONHA PODE DESENCADEAR ESQUIZOFRENIA?

Para esclarecer esta dúvida quanto ao potencial nocivo da maconha, surgiu um estudo na Suécia avaliando praticamente todos os indivíduos alistados no serviço militar nos anos de 1968 e 1969. O uso de canábis durante a vida se mostrou associado a um risco de até 6 vezes maior para esquizofrenia.

Porém, este primeiro estudo foi recebido com ceticismo pela comunidade científica. Alguns pontos fracos do estudo foram questionados: a) o indivíduo que usa maconha poderia usar também outras drogas mais "pesadas", e estas sim causariam esquizofrenia; b) também poderia acontecer um uso de maconha como tentativa de automedicação para os sintomas da esquizofrenia; c) os indivíduos com maior predisposição para esquizofrenia usariam maconha para diminuir sintomas prodrômicos (ou “pré-esquizofrenia”).

 

Surgiram então outros estudos para confirmar os achados do estudo sueco publicado em 1987. Nenhuma das drogas ditas "pesadas", como opiáceos, drogas psicodélicas, cocaína e outros estimulantes, mostrou-se associada ao desencadeamento da psicose 5. Uma análise mais profunda do estudo sueco, publicada em 2002, e um estudo neo-zelandês mostraram que não existia nenhum traço de predisposição a esquizofrenia na infância nos indivíduos que usavam maconha, afastando a hipótese de que os usuários de maconha seriam aqueles com sintomas prodrômicos (ou “pré-esquizofrenia”). Observou-se também que a maconha aumentava os sintomas da esquizofrenia e não os atenuava, afastando-se a hipótese da automedicação.

Além disso, observou-se que a maconha usada em idade precoce (menos de 14 anos), poderia desencadear transtorno de personalidade esquizotípica, transtorno relacionado a ter crenças incomuns, crenças que quase chegam a ser uma franca quebra com a realidade. Por fim, percebeu-se que diversos estudos concluíam que a maconha aumentava o risco de psicoses transitórias e de esquizofrenia, uma doença grave e sem cura.

 

QUAL A IMPORTÂNCIA DESTES ACHADOS RELACIONANDO A ESQUIZOFRENIA AO USO DE MACONHA?

A importância destes achados é enorme para a sociedade. A prevalência de esquizofrenia é de cerca de 1% na população, tanto no Brasil, como em outros países. Portanto, a doença acomete cerca de 2 milhões de brasileiros. As estimativas do Reino Unido, onde o uso de maconha é superior ao Brasil, apontam que de 20 a 25% dos novos casos de esquizofrenia serão devidos ao uso de maconha. Se chegássemos a esta cifra no nosso país, estaríamos diante de cerca de meio milhão de pessoas com esquizofrenia devido ao uso de maconha no Brasil.

Além de aumentar o risco de esquizofrenia e outras psicoses, a maconha também se mostrou associada a um aumento de até 1,6 vezes no risco para depressão maior. Muito embora a depressão maior seja um transtorno menos grave que a esquizofrenia, a depressão está associada a gastos de mais de 80 bilhões de dólares por ano nos Estados Unidos. A Organização Mundial da Saúde destacou a sua relevância, colocando-a como a maior causa de incapacidade no mundo.

 

A MACONHA PODE PIORAR O QI, A ATENÇÃO E A CAPACIDADE COGNITIVA GLOBALMENTE?

 Comenta-se no dia a dia que o indivíduo que fuma maconha "esquece as coisas", é "meio lesado" e fala devagar. Contudo, até recentemente não havia estudos bem delineados avaliando se a canábis poderia afetar a capacidade cognitiva. Os efeitos agudos da maconha piorando a capacidade cognitiva certamente se davam após o uso agudo ou imediato. Havia estudos pequenos mostrando alterações cognitivas, como em função executiva, velocidade de processamento e memória.

Um estudo muito bem delineado, com mais de mil indivíduos, avaliou os indivíduos de 3 anos a 38 anos de idade. Observou-se que o uso de maconha na infância e adolescência poderia diminuir até 8 pontos de QI na vida adulta.

Além dos prejuízos no QI, também se observou piora em outras funções cognitivas, como na atenção, na memória e na função executiva. Alterações na função executiva poderiam gerar, p.ex., problemas para planejar e pensar (ou explanar) as coisas de uma forma organizada e seqüencial.

Este estudo já se antecipou a possíveis questionamentos. Os déficits observados não poderiam estar associados ao uso de outras drogas “mais pesadas”? O estudo mostrou que os efeitos observados não se deviam a um uso concomitante das “drogas pesadas”, nem de dependência de álcool. Será que então os déficits não se devem ao uso agudo (ou imediato) de maconha atrapalhar os testes? Mesmo após a correção dos dados, tirando os indivíduos que tinham feito uso de maconha até a última semana, os dados relativos ao QI se mantiveram.

Sabe-se que o uso de canábis está associado a um aumento de evasão escolar, ainda que não esteja claro se a maconha é ou não o agente que leva à evasão . Daí surgiu a hipótese que o prejuízo no QI estaria presente por causa da evasão escolar que a maconha poderia causar. Contudo, neste estudo de Townsend e colegas, o prejuízo no QI se mostrou significante mesmo quando se controlou este fator. Pessoas com mesmo tempo de estudo tinham QI pior quando usavam maconha.

Dentro deste panorama da maconha causando déficits cognitivos observados por diversos testes, surgiu também a questão de se os déficits observados seriam detectados somente nos testes ou se haveria um impacto real no dia-a-dia dos indivíduos. E se mostrou que pessoas próximas aos indivíduos também observavam estes déficits tanto na atenção como na memória; além disso, as pessoas próximas aos usuários notavam déficits maiores conforme o uso de maconha fosse maior.

Além de a maconha se mostrar associada a déficits cognitivos graves, o estudo mostrou que a perda de QI foi irreversível, mesmo depois de parar o uso de maconha. Em suma, o uso de maconha se mostrou associado a uma grande perda de QI (até 8 pontos) e uma perda global da cognição.

Os déficits cognitivos e o desencadeamento da esquizofrenia associados ao uso da maconha podem ser explicados por alterações em regiões cerebrais associadas com esquizofrenia e memória como hipocampo e amígdala. De fato, o uso de maconha se associou a diminuição destas regiões cerebrais mesmo em usuários adultos.

 

O THC DA MACONHA DE HOJE

O teor de tetraidrocanabinol (THC) da maconha fumada nas últimas décadas é baixo comparado ao teor de THC na maconha hoje. Enquanto na década de 70 o teor de THC era de cerca de 3%, hoje o teor de THC da maconha chega até 20% em países como a Holanda.

 

COMO DIMINUIR O USO DE MACONHA?

Por outro lado, para que se diminua o uso de maconha, faz-se necessário aumentar a percepção de risco (ou dano). A discussão sobre os efeitos nocivos da maconha é relevante não só para que se possa decidir sobre a descriminalização e legalização da droga, mas também para que a população possa se proteger dos efeitos negativos da droga ou ao menos poder usar sabendo dos riscos já conhecidos.

O risco de se desenvolver dependência em quem experimenta maconha é de cerca de 9%. Contudo para a adolescência os números mudam: de cada 6 adolescentes que fumam maconha, um se torna dependente. Além disso, o uso de maconha aumenta o risco de usar outras drogas, podendo ser considerada "porta de entrada" para outras drogas.

Tendo em vista a relevância dos efeitos da maconha, como diminuição de até 8 pontos de QI e aumento de risco de depressão e esquizofrenia, e os altos custos financeiros e sociais daí decorrentes, faz-se necessário um esforço sério para que as novas informações científicas cheguem ao público leigo. Os dados apresentados apontam para um potencial especialmente nocivo da maconha em relação ao álcool e às outras drogas, especialmente quando se comparam os efeitos mentais do uso durante a adolescência. Um debate baseado em dados científicos sólidos tem sido a proposta da Associação Brasileira de Psiquiatria, que recentemente se posicionou contrária à legalização da maconha no Brasil.

Rafael Augusto Teixeira de Sousa é Médico Psiquiatra, PhD, Preceptor da Residência em Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, Pós Doutor pelo National Institutes of Health, EUA.

 

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