Opinião

Famílias e comunidades propositivas

Como o ser humano é intrinsecamente livre e sujeito à contradição, “não fazendo o bem que quer, mas sim o mal que não quer” (cf. Rm 7,19), suas instituições estão permanentemente em maior ou menor dificuldade. Com a família não é diferente. Pelo contrário, sendo a mais constitutiva e mais íntima de nossa humanidade, é uma das que mais sofrem com as contradições e imperfeições nascidas da nossa liberdade. 

Contudo, alguns contextos sociais são mais favoráveis ao fortalecimento das famílias e outros menos favoráveis – ou até mesmo hostis a elas. Não é preciso observar com muita atenção para perceber que a família, em nossa sociedade atual, encontra muitas dificuldades para se manter unida e capaz de cumprir sua missão. 

Essa situação das famílias não deixa de ser paradoxal. Na teoria, no ocidente, ao longo do século XX, floresceu a liberdade para amar, cresceu a possibilidade de os jovens escolherem seus cônjuges e houve o reconhecimento de uma série de direitos sociais que deveriam melhorar a vida das famílias mais pobres. Na prática, a liberdade no campo afetivo não veio acompanhada do discernimento necessário para usá-la bem. Apesar do reconhecimento dos direitos, a jornada de trabalho dos pais continua excessiva e estafante, e a fragmentação do tecido social enfraqueceu as famílias extensas e as comunidades tradicionais, deixando as crianças e os jovens mais solitários e desamparados.

Quem estuda os documentos recentes do magistério sobre esse tema, como a Familiaris Consortio (1981), de São João Paulo II, o relatório do Sínodo dos Bispos, “A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo” (2015); ou a “ Amoris Laetitia” (2016), do Papa Francisco, encontra tanto reflexões sobre a natureza desses problemas quanto indicações de soluções possíveis. 

Nesse contexto, algumas reações à “ideologia de gênero”, ainda que justas e necessárias, correm o risco de se tornar um esforço para “enxugar gelo”: combatem as consequências de um processo de desestruturação da família e da personalidade, sem atacar de modo efetivo suas causas. 

É inadmissível, por exemplo, a difusão de cartilhas que, em nome de uma educação sexual liberal, destroem a percepção da natureza íntima da pessoa ou do vínculo indissociável entre  sexualidade e amor. Contudo, é necessário reconhecer que grande parte das famílias já não tem critérios de discernimento claros nessas questões ou não sabe como transmitir seus valores para seus filhos.  As escolas são espaços de sociabilização e amadurecimento inevitáveis para as crianças e jovens – sua omissão no processo educativo pode levar a coisas ainda piores, como a absorção indiscriminada de valores e comportamentos divulgados pela mídia ou adquiridos “na rua”. Uma solução consistente passa, portanto, pela produção e ampla difusão de materiais formativos adequados, baseados nas características fundamentais da natureza humana  e no vínculo entre amor e sexualidade. 

Hoje, mais do que nunca, é necessário que as famílias sejam propositivas, capazes de apresentar os valores que as animam a seus filhos e amigos – não como normas que inibem a liberdade, mas como vias que levam à plena realização e felicidade da pessoa. 

Para isso, as comunidades têm um papel fundamental. A família sozinha dificilmente consegue enfrentar a avalanche representada pelas ideologias e visões de mundo difundidas nas mídias, devido ao distanciamento entre pais e filhos imposto pelo ritmo de trabalho em nossa sociedade.

 
Arte: Sergio Ricciuto Conte
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