Comportamento

Sobre a perfeição da família

No contato cotidiano com famílias, surgiu-me uma reflexão: de onde vem essa ideia, desejo ou mesmo síndrome de perfeição? Em que momento da história essa ideia foi tomando conta do imaginário dos pais e tornando-se uma meta tão bonita quanto inalcançável?

A família da propaganda: sorridente, harmoniosa, alegre, bem vestida, com uma casa limpa, bem decorada, carro bonito, pessoas amáveis, filhos obedientes, inteligentes, alegres, criativos, viagens à Disney, quartos de brinquedo (cama que é carro, brinquedos organizados na altura das crianças, parede de lousa)... enfim, a verdadeira família de faz de conta. Pergunto-me: existe alguma família assim na realidade de carne e osso em que todos vivemos, ou somente em nossos imaginários e fantasias adoentadas e consumistas?

Perdemos a memória: perdemos de vista que não há perfeição debaixo do céu. Somos humanos e imperfeitos. Vivemos nossas infâncias em famílias imperfeitas, muitos de nós não tínhamos tantos brinquedos e quartos decorados, dividíamos roupas, guloseimas, herdávamos roupas e bicicletas dos mais velhos, porém, estamos aqui – sobrevivemos e somos felizes! Temos nossas marcas, nossas dificuldades e, talvez, “traumas”, mas quem não os terá? Há 33 anos, havia uma banda que cantava as “dificuldades” dos “rebeldes sem causa”. Na música, falava da dificuldade que era para o adolescente conviver com pais tão compreensivos, permissivos e protetores, pois ficavam sem causa para a rebeldia que é tão importante para o amadurecimento, especialmente na fase da adolescência! Tantos anos depois, continuamos criando “bolhas” de perfeição e harmonia. Esquecemos que criticar os pais, romper com alguns costumes, rebelar-se com algumas leis são movimentos necessários para amadurecermos como pessoas e para chegarmos ao equilíbrio.

Perdemos os critérios: o que realmente importa? O que é ou o que aparenta ser? A roupa, o quarto, o carro, o sorriso constante no rosto das crianças, ou o afeto, os valores transmitidos, o choro decorrente do comportamento corrigido? Formar uma pessoa forte e preparada para enfrentar as situações que a vida lhe oferecerá ou criar uma pessoa mimada, fragilizada, que, possivelmente, desmoronará diante do primeiro obstáculo que aparecer? Fotos lindas de momentos felizes de convívio familiar para serem postadas nas redes sociais ou os afetos, alegrias e tristezas vividas na intimidade do lar que criam laços que nem o tempo e a distância podem desconstruir? A vida é muito, mas muito mais do que o mostrado no Instagram ou no Facebook. O que vivemos precisa ser inteiro, intenso e transformador. Afinal, viver é crescer, aprender, melhorar. É muito pouco viver para postar!

Perdemos a espontaneidade: vivemos o politicamente correto, aquilo que é bonito de se mostrar, aquilo que nos ensinam os manuais de como criar filhos felizes, como criar uma pessoa de sucesso, como educar sem traumatizar, como manter uma relação duradoura e feliz... Somos todos diferentes, fomos criados únicos e irrepetíveis. Dicas e reflexões são muito interessantes, porém, receitas não. A cada um caberá uma estratégia diferente. Por isso, pais, apostem em suas percepções, em conhecer bem os filhos, conviver com eles e buscar para cada um o modo que lhe ajude a crescer e o modo de extrair o seu melhor. Para isso, tomar a missão de pais com responsabilidade é fundamental – exercício árduo, difícil, mas maravilhoso!

Perdemos o sentido real da vida: Não há perfeição, não há alegria plena, não há harmonia ininterrupta. Também não há sofrimento que dure para sempre, trauma que não possa ser ressignificado, experiência que não possa ser transformada, não há mal do qual não possamos tirar um bem. Mas, para isso, é preciso que sejamos fortes, corajosos, capazes de olhar de frente para a realidade e saber que nossa vida consiste em lutas, em construções: formar a personalidade, conquistar virtudes, encontrar alguém humano como nós e, por isso, também imperfeito para compartilhar a vida.

A perfeição de nossa família e de nossos filhos está no empenho em viver o amor, fazer o bem, procurar acertar e saber pedir perdão ao errar. Mais ainda, está no recomeçar constante e esperançoso a cada erro cometido.

Simone Ribeiro Cabral Fuzaro é fonoaudióloga e educadora. Mantém o blog educandonacao.com.br

 

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