Fé e Cidadania

Os vicentinos e as políticas públicas

A mulher chegou aflita, como se fosse uma sobrevivente de um naufrágio. Trazia ao colo uma criança de alguns meses. Outra menina de uns 3 anos agarrava-se assustada ao seu vestido. “Preciso de roupa, calçado e alimento” – dizia com lágrimas na voz – “a água da enchente invadiu minha casa, água suja, cheia de lama. Tudo se perdeu. Meu marido, eu e nossos quatro filhos ficamos apenas com o que estava no corpo. Se vocês puderem me ajudar, tenho certeza que Deus vai lhes recompensar”.

Essas palavras, entrecortadas pela emoção, foram ditas ao grupo (ou conferência) da Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP). Nem é preciso acrescentar que os membros do grupo se desdobraram para atender a seu pedido. Depois vieram outros, e mais outros!... Sabe-se que cenas semelhantes se repetem em inúmeras comunidades e paróquias. Hoje, segundo um recente relatório da própria Sociedade, ela conta com mais de 50 mil conferências, somando cerca de 800 mil membros, que atuam em 153 países, atendendo um número superior a 30 milhões de pessoas com necessidades urgentes.

Quando se fala no assunto das “políticas públicas”, tema da Campanha da Fraternidade deste ano (CF 2019), logo vem à tona ações governamentais que, com o orçamento dos impostos e taxas dos cidadãos, destinam-se a garantir um nível de vida justo e digno aos setores mais carentes da população. Distinguem-se das políticas compensatórias, as quais tendem a ser emergenciais, provisórias, assistencialistas e por tempo determinado. Além disso, uma verdadeira política pública deve contar com canais, instrumentos e mecanismos que envolvam a participação ativa da sociedade civil organizada.

A obra cristã da caridade realizada pelos Vicentinos, entretanto, fundada em 1833 por Antoine Frédéric Ozanam e inspirada na espiritualidade de São Vicente de Paulo, merece especial destaque. Se é verdade que, de um lado, representa um trabalho de assistência e tem o olhar fixo em socorrer as vítimas de grandes emergências, também é certo que, por outro lado, há quase dois séculos mantém uma presença significativa no mundo inteiro. Quem a conhece de perto sabe que não se trata apenas de um socorro temporário e emergencial. Ao contrário, a “conferência da caridade”, como era chamada inicialmente, tem um programa intenso de visitas às famílias e de encontros de avaliação e planejamento, tudo isso revestido por uma espiritualidade fundamentada no duplo e central mandamento do Evangelho: “Amar a Deus e amar o próximo”

Diante dessa seriedade e persistência, seria exagero falar aqui de uma “política pública”? Ação de caráter singular, não há dúvida, mas decisiva para o bem-estar de tantas famílias. Também nesse caso, a obra vai a bom termo graças às doações de uma multidão de pessoas. De uma forma ou de outra, a SSVP leva a cabo uma redistribuição de renda, a qual, a longo prazo, contribui para maior fraternidade, justiça e paz, como se lê no material da CF 2019 da CNBB. Direta ou indiretamente, é uma maneira de diminuir os desequilíbrios entre o pico e a base da pirâmide socioeconômica.

Padre Alfredo José Gonçalves, CS, teólogo, é o atual Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos (scalabrinianos). Realizou trabalhos pastorais em favelas, cortiços e no interior do Estado de São Paulo com os migrantes cortadores de cana-de-açúcar. Foi diretor do CEMCentro de Estudos Migratórios de São Paulo, assessor do Setor Pastorais Sociais da CNBB, Superior da Província São Paulo dos Padres Scalabrinianos.
 

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