Opinião

Órfã de ninguém

No fim dos anos 1990, o mundo inteiro conheceu o caso da menina Jaycee, que, embora cinco pessoas pudessem ser seus genitores, tornou-se órfã de ninguém.

Em 1994, Luanne e John Buzzanca, após terem gasto 200 mil dólares em tentativas para ter um filho, contrataram uma mãe de aluguel por 10 mil dólares. Jaycee nasceu em março de 1995; porém, um mês antes, John se divorciara, dizendo que nunca quisera ter um filho, negando a responsabilidade paterna. Luanne processou John e acabou recebendo a custódia da filha; durante dois anos seguintes, John assumiu o pagamento de pensão para ela e para a menina. Em 1997, Buzzanca conseguiu que o juiz Robert Monarch o liberasse do encargo, declarando que ele não era o pai legal; declarou, ainda, ser a menina legalmente órfã, porque Luanne não podia também ser considerada mãe legal. Jaycee não tinha vínculos genéticos com o casal Buzzanca nem com a mãe de aluguel, e seus pais genéticos tinham anonimato garantido. Ela passou a existir numa espécie de vácuo. A decisão foi reformada pelo Tribunal de Apelação da Califórnia, sob o argumento de que Jaycee não teria nascido sem o acordo de Luanne e John e que, portanto, era filha legal do casal.

Em 2014, o livro “Not my daugther: A verdadeira história de um ex-narcotraficante e um caso emblemático de maternidade”, de autoria de John Buzzanca e Paul Lonard, apresentou o ponto de vista do pai que contestou sua obrigação de pagar pensão à criança que fora legalmente reconhecida como sua filha.

O tema controverso da Tecnologia de Reprodução Assistida é um exemplo de ciência biológica moderna que está sendo empurrada para além do limite ético, porque ameaça direitos essenciais como autonomia, informação, igualdade aos recursos para todos os envolvidos.

É necessário considerar os seguintes conceitos:

Fertilização in vitro (FIV) heteróloga: terceiros doam os gametas e têm a liberdade legal de resguardar seu anonimato.

Esterilidade e a infertilidade: entendidas como doenças dignas de tratamento no Brasil, conforme o artigo 196 da Constituição Federal, que assevera a saúde como direito de todos.

Mas, sobretudo, deve-se considerar a pessoa concebida sem condições de expressar sua vontade, sem direito à identidade, à informação, ao equilíbrio afetivo, lembrando, ainda, que a herança genética está ligada ao direito de saúde e à solução de problemas hereditários.

No Brasil, o artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente afirma que ela goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando todas as oportunidades e facilidades para lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Um filho não pode ser reduzido a um objeto de desejo, a uma lógica de produto de laboratório de efeitos e resultados. Claro que o fruto da concepção traz a dignidade inerente a toda pessoa humana, porém a Bioética Personalista, que parte da visão integral da pessoa e não prioriza apenas a liberdade de quem pode se manifestar, observa que a avaliação ética de um procedimento exige pesar igualmente três fatores: o objetivo, o meio e as consequências. Na técnica da FIV, os meios têm trazido questionamentos quanto às consequências relativas aos direitos da criança concebida, além da grande perda de embriões fecundados que são descartados ou congelados e da própria solidez do relacionamento dos genitores.

No fim de seu livro, Buzzanca chama Jaycee de a única vítima inocente em tudo isso e expressa a esperança de que ela tenha uma boa vida. Esses votos seriam suficientemente compensadores para Jaycee?

Elizabeth Kipman Cerqueira é médica ginecologista--obstétrica, especialista em Logoterapia, coordenadora do Departamento de Bioética do Hospital São Francisco, em Jacareí (SP).

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