Opinião

Natal, frio e migrantes

Proveniente de Milão, chego a Berna, na Suíça. Antes mesmo de verificar que a temperatura é de apenas três graus positivos, sinto-a no corpo. Logo, deparo-me com os imigrantes. Na própria estação, e depois pelas ruas, distingo alguns deles tentando abrigar-se do frio. Em casa, os companheiros advertem que a previsão anuncia neve para os próximos dias. Na verdade, não é grande o número dos estrangeiros recém-chegados à cidade de Berna. Eram bem mais visíveis no trem anterior, em que viajei entre Pádua, Bréscia e Milão.

O frio consiste em um dos flagelos sofridos pelos que conseguem entrar no continente europeu, originários em sua maioria da África, do Oriente Médio e da Ásia. Vulneráveis no que diz respeito aos direitos básicos de pão e teto, terra e trabalho, também o são quanto à diferença de temperatura entre os países de origem e o lugar de destino. Convém não esquecer, de resto, que boa parte dos migrantes foge não apenas das condições de pobreza e da violência, mas igualmente dos efeitos nefastos e crescentes devido às mudanças climáticas.

Vale o mesmo para a caravana composta de migrantes de Honduras, El Salvador e Guatemala e outros países da América Central, que se dirige aos Estados Unidos. O frio e a fome mordem o corpo; a saudade e a solidão atormentam a alma. Pela estrada, sonhos se quebram e tombam aos pedaços, enquanto um fio de esperança nutre as energias e mantém o olhar fixo no horizonte. O amanhã ainda pode ser melhor que aquilo que ficou para trás. Por isso, põem-se a caminho. Marcham porque pouco ou nada têm a perder.

Na preparação litúrgica e festiva do Natal, não é difícil imaginar como haverão de passar esses milhões de sem raiz, sem pátria e sem destino – migrantes, refugiados, prófugos, trabalhadores temporários e outros mais. Torna-se inevitável a alusão ao nascimento do Deus menino. Também sua família encontrava-se em viagem por causas alheias à sua vontade. Hoje a saga de José e Maria apresenta-se-nos mais ou menos romantizada: Jesus chega a nascer com meses de antecedência, rodeado de luz, mercadorias e muito luxo, como meio de incrementar o comércio, especialmente nas lojas dos shopping-centers.

Em meio ao vaivém e aos infortúnios da família de Nazaré, porém, escondia-se o desígnio de Deus. Os caminhos do Senhor não são os nossos caminhos. O projeto misterioso de Deus passa pelas “alegrias e esperanças, tristezas e angústias” da trajetória de cada pessoa, de cada família e da história da própria humanidade. Do mesmo modo, o lado visível e trágico da migração, como a tragédia da cruz, oculta uma semente invisível lançada no seio da terra. 

Na escuridão úmida do solo, a semente cria raízes, expande-se, germina e cresce. Levanta-se em direção à luz do sol, ao ar livre e ao azul infinito. O Reino de Deus faz-se planta, produz folhas, flores e frutos. Até os pássaros do céu fazem o ninho à sua sombra. Numa palavra, o sofrimento não foi em vão. O bem-aventurado João Batista Scalabrini, “pai e apóstolo dos migrantes”, via nas migrações, para além da exploração, da injustiça e das desigualdades sociais, uma forma de intercambiar valores positivos entre os povos, enriquecendo-os reciprocamente.

Disso se conclui que os migrantes e as migrações pavimentam na história alternativas ao projeto político e econômico atual. O sofrimento, paixão e morte de Jesus é o grão de trigo jogado na terra em vista da ressurreição. Outros pequenos grãos lhe seguem as pegadas, como profetas e protagonistas de uma sociedade recriada.

Padre Alfredo José Gonçalves, CS, teólogo, é o atual Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos (scalabrinianos). Realizou trabalhos pastorais em favelas, cortiços e no interior do Estado com os migrantes cortadores de cana. Foi diretor do CEM-Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, assessor do Setor Pastorais Sociais da CNBB, Superior da Província São Paulo dos Padres Scalabrinianos
 

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