Editorial

Natal, festa da grande acolhida

As narrativas iniciais dos Evangelhos, que tratam da origem, concepção e nascimento de Cristo (particularmente Mt 1-2, Lc 1-2 e Jo 1), apresentam uma enorme riqueza não só teológica, mas também humana. Nosso coração se comove diante de Deus que, num gesto inimaginável para nós, se faz carne; da maternidade que nasce do sim de uma adolescente; do pai dedicado e cheio de amor gratuito por sua família; do recém-nascido pobre e indefeso aclamado por pastores, magos e anjos. O Natal é a festa do grande dom pelo qual todos anseiam, quer reconheçam, quer não. 

Mas visto sob outro ângulo, o Natal também é a festa da grande acolhida. Maria que acolhe o mistério de Deus, José que acolhe Maria e seu filho, a criança para a qual não há lugar nas estalagens dos homens, mas que será acolhida e glorificada pela criação e pelo mundo, representados pelos pastores, pelos magos e pelos anjos. De modo ainda mais extraordinário, é o próprio Deus que, nascendo de uma mulher, acolhe radicalmente a condição humana, Cristo que se faz filho para que sejamos filhos adotivos do Pai. 

Doação e acolhida permanecem, como rastro natalino, a marcar a identidade dos cristãos ao longo dos séculos. Em sua Regra monástica, São Bento (480-547), ecoando o Evangelho de Mateus (25, 3145), diz que todo hóspede deve ser recebido como o próprio Cristo (cf. Capítulo 53). Aquele que chega, particularmente quando está frágil e vulnerável, representa mais que uma responsabilidade a nos tirar de nossa zona de conforto: é um convite que Jesus nos faz para ficarmos mais perto d’Ele. Se o acolhido deve ser agradecido àquele que o acolhe, este deve ser grato a Deus que se dignou a visitá-lo na pessoa daquele que foi acolhido. Toda a dinâmica dos relacionamentos interpessoais, das relações entre grupos sociais, povos e nações se transfigura à luz desse mistério da acolhida. 

Ao mesmo tempo, doação e acolhida estão entre aquelas “sementes do Verbo”, citadas na Encíclica Redemptoris Missio (Nº 28), de São João Paulo II, potencialmente presentes no coração de todos e que germinam de modo maravilhoso e comovente onde quer que as pessoas levem a sério sua própria humanidade.

Diante do atual drama dos migrantes e refugiados em todo o mundo, tema da mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz de 2018, vale a pena conhecer o caso de Jacques Derrida (1930-2004), filósofo francês criador do desconstrucionismo, frequentemente apontado como um dos grandes autores ligados ao relativismo pós-moderno. Na década de 1990, Derrida, movido pela questão dos refugiados e exilados políticos, pensou a hospitalidade incondicional como algo que não pode ser plenamente construída no mundo humano, mas deve ser pensada e desejada mesmo assim (cf. “Da hospitalidade”, São Paulo: Escuta ). Na mesma época, junto com o filósofo italiano Gianni Vattimo, organizou um seminário e um livro sobre o tema da religião (“A religião”, São Paulo: Editora Estação Liberdade ). 

Esse exemplo mostra como a acolhida e o dom de si correspondem ao coração humano. Ao mesmo tempo, o quanto parecem distantes e pouco factíveis se cortados de sua raiz mais profunda, que é o encontro com o Deus que se fez homem. Por isso, aquele que se dedica com sinceridade a essa experiência acaba tendo – de um modo ou de outro – que debruçar-se também sobre a experiência religiosa. O mundo, e cada um de nós, precisa dramaticamente da doação e da acolhida incondicional, mas a gratuidade que as torna possíveis não pode acontecer plenamente sem o gesto primeiro do Pai. 

Para reconhecermos integralmente essa gratuidade, não basta o conhecimento intelectual, é preciso praticar a doação e a acolhida. Uma família que vive com essa abertura ao outro, educa a um modo de ser que se contrapõe ao individualismo e ao consumismo de nossa sociedade. Por isso, experiências como as de adoção e de apadrinhamento afetivo são tão importantes para os cristãos. Não se trata apenas de um bem para as crianças acolhidas e para a sociedade, mas para todos que vivem na família. 

Quando os filhos são vistos como um projeto e um direito dos pais – e não como um gesto de doação no qual o amor conjugal se entrega a um outro -, a família deixa de ser uma escola de doação e acolhida, sucumbindo à mentalidade individualista e ao desamor de nossos tempos. A inseminação artificial, eufemisticamente chamada, no caso das mulheres, de reprodução assistida, por exemplo, padece muito dessa “deseducação” de nossas famílias, que imaginam que seus filhos só serão seus, se gerados com seu material genético. Mostra nossa dificuldade em lidar com o poder das novas tecnologias, usando-as indiscriminadamente e sem sabedoria, como observa o Papa Francisco na Laudato Si ’ (Nº 103-105). Com isso, as mulheres se submetem a grandes sofrimentos físicos e psíquicos, a família gasta muito dinheiro e, pior que tudo, tem de enfrentar o problema dos embriões “excedentes”, que não se desenvolvem e terão que ser mortos ou mantidos indefinidamente em vida suspensa nos laboratórios.

Mais sábio e mais humano é compreender que a paternidade e a maternidade são muito mais que uma questão biológica. Um conhecido militante sindical católico latino-americano, quando perguntado por qual razão ele e sua esposa haviam decidido adotar um filho, já tendo vários, respondia: “porque queríamos saber se os filhos do amor podem ser tão nossos filhos quanto aqueles do sangue... e descobrimos que podem ser”. Uma bela expressão, “filhos do amor”, que na verdade deveria valer para todos – tanto em nossa relação com nossos pais biológicos quanto na relação com o Pai que deu a todos nós o direito de nos considerarmos seus filhos adotivos em Jesus Cristo (cf. Jo 1, 12-13).

Sem o reconhecimento de um amor primeiro, gratuito e constitutivo de nossa identidade, todas as demais manifestações de afeto se dissolvem, vítimas de nossas contradições e de nossa volubilidade. Por isso, o mundo precisa do Natal, dessa celebração do grande dom e da grande acolhida. Mesmo em nossa sociedade secularizada e individualista, o Natal permanece como a festa maior. Não é porque pode ser reduzida a uma celebração do consumo, como muitos pensam, mas sim porque o coração do ser humano anseia por esse dom gratuito, por essa acolhida incondicional que não pode ser celebrada em nenhum outro momento.

Que cada um de nós possa viver todos os dias de nossa vida como um permanente Natal, que cada um seja uma testemunha que colabora para manter esse rastro natalino presente em cada gesto sincero de doação e acolhida.

 

Arte: Sergio Ricciuto Conte

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