Fé e Cidadania

Intolerância versus desrespeito: do carnaval à Campanha da Fraternidade

Em 2015, diante do episódio do transexual que representou um Cristo crucificado na Parada Gay, Dom Odilo Scherer, Arcebispo de São Paulo, escreveu: “Entendo que quem sofre se sente como Jesus na cruz, mas é preciso cuidar para não banalizar ou usar de maneira irreverente símbolos religiosos, em respeito à sensibilidade religiosa das pessoas. Se queremos respeito, devemos respeitar”.
Casos como esse vêm se tornando cada vez mais comuns no Brasil. Começamos este ano com o episódio envolvendo um grupo de comediantes. Agora temos o desfile da Mangueira, que buscava retratar a vida de Cristo, associando-o a diferentes grupos vítimas de violência e discriminação no Brasil. No entanto, apesar de as situações parecerem semelhantes, podem ser um pouco diferentes.
Em alguns casos, temos o escracho proposital, a intenção explícita de ridicularizar, talvez não a Cristo, mas sim os valores da comunidade cristã e aquelas pessoas mais afeitas a eles.
Em outros, aos quais alude Dom Odilo, ao dizer que entende que “quem sofre se sente como Jesus na cruz”, existe um desejo de se identificar com Cristo. Antes de ser um ataque aos cristãos, é uma tentativa – da qual podemos até discordar – de encontrar a Cristo.
Nos dois casos, contudo, acaba-se por ferir a sensibilidade religiosa de muitas pessoas. Para a mentalidade hegemônica em nossa sociedade (que não é obrigatoriamente a da maioria da população), o desrespeito motivado por questões étnicas ou sexuais é imperdoável, mas os religiosos teriam a obrigação de não se sentirem ofendidos com nada. Assim, o sentimento de desrespeito é rotulado como intolerância.
Com isso, tanto o escracho proposital quanto a tentativa de uma aproximação bem intencionada a Cristo se igualam e, em função do confronto entre intolerância ou desrespeito, nada de bom acaba nascendo. Os que desejavam se identificar com o Cristo sofredor perdem a simpatia dos cristãos mais devotos, e estes cristãos passam a ter mais dificuldade de apoiar o sofredor, afastando-se do lema da Campanha da Fraternidade 2020: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”.
A busca do diálogo sempre é a melhor estratégia nessas situações, pois não pode ser rotulada como “intolerante” e nos ajuda a viver mais a verdadeira caridade cristã. Diante de pessoas que, buscando uma identificação com Cristo e não o escracho, acabam ofendendo os cristãos e seus valores, o diálogo é ainda mais necessário.
Esse diálogo, contudo, terá pouca chance de sucesso se começar no momento em que o evento polêmico está para acontecer. Nessas horas, as propostas já estão definidas e as pessoas têm mais dificuldade para compreender a posição do outro e se adaptar.
O encontro e o cuidado cotidiano com o nosso próximo que sofre são os instrumentos que nos capacitam a fazer esse diálogo nos momentos críticos – sem cairmos em relativismos ou aceitarmos o desrespeito, mas sim nos orientando pelo mandamento do amor.
Num primeiro momento, talvez não encontremos muitos interlocutores para esse diálogo. Nesse caso, a interpelação de Abraão a Deus, no episódio de Sodoma, pode nos dar o ânimo necessário (cf. Gn 18,16-33). Deus quer destruir a cidade, mas Abraão pergunta-lhe se destruiria a cidade se houvesse nela uns poucos justos. No fim, Deus concorda que pouparia a cidade mesmo que os justos fossem apenas dez.
Nessas situações, de aparente desrespeito, nós também encontraremos os justos que buscarão o diálogo conosco. Poderão ser poucos, mas a experiência, com certeza, valerá a pena.
 

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