Fé e Cidadania

Discernimento da realidade social

A recomendação do Papa Francisco na abertura da Quaresma, simples em sua formulação, pode ser benfazeja não somente ao nosso progresso espiritual, mas também à qualidade de nossa presença no mundo: “A Quaresma é o tempo para desligar a televisão e abrir a Bíblia. É o tempo para se desconectar do telefone celular e se conectar ao Evangelho”.

A enxurrada de informações que recebemos (e amiúde reproduzimos), quer pela mídia tradicional, quer pelas mídias sociais, induz-nos ao torvelinho da sociedade polarizada ou a percebermos a sociedade como polarizada. Tendo a concordar que essa indução seja uma estratégia intencional de poder político, econômico e midiático. Estamos sempre ou na defensiva de um dos lados ou imobilizados ante o pavor de acirrar ainda mais os ânimos. Ficamos como que capturados pela “crise política” do momento, distraídos daquilo que realmente conta, inclusive de uma sociedade fraterna.

Em artigo publicado nos Estados Unidos, em janeiro deste ano, Charles C. Camosy demonstra, com base em pesquisas do Pew Research, que a sociedade daquele país não está tão polarizada quanto se quer fazer crer. Não penso que seja outra a situação no Brasil. Desconectar-se das mídias sociais e desligar a TV permitiria, assim, sair dessa tensão que imobiliza e desvia. Abrir a Bíblia e conectar-se com o Evangelho, no “deserto” oferecido pelo tempo quaresmal, propiciaria retomar a profecia e o dinamismo do amor cristão que somos chamados a testemunhar na sociedade.

A Campanha da Fraternidade de 2020 aponta um caminho: ver, ter compaixão e cuidar.

Ver o próximo que tem sua vida agredida em situações de vulnerabilidade, exclusão, desrespeito aos direitos humanos, desenraizamento, violências, bem como ver os processos sócio-político-econômico-culturais que aviltam esta vida.

Ter compaixão, ou seja, mobilizar o amor de Deus em nós, que é proativo, inclusivo, atento, empático, misericordioso, generativo…

Cuidar, como os milhares de “Santas Dulces” comprometidas, sem ser notícia, da vida dos próximos em suas mais variadas fases e condições. Testemunho que dá coragem e esperança! Cuidar, também, com compromisso, da paz, dos direitos humanos, da ecologia integral, do diálogo intercultural, num exercício de cidadania ativa típica dos cristãos leigos.

É fato, porém, que, se estamos de acordo com o nosso dever de cuidar da “casa comum”, quando se trata de dar forma a esse cuidado e a essa “casa”, nossas concepções podem divergir de maneira até aparentemente inconciliável. Emergem, no dizer do Papa Francisco, as “tensões polares”, mescladas a nossas experiências, idiossincrasias, crenças.

Faz-se necessário o exercício do discernimento evangélico (Evangelii gaudium, 50), ou seja, “aprender a reconhecer a voz do Espírito, interpretar seus sinais e escolher seguir aquela voz e não as outras. Isso nos interpela em nível pessoal, mas também como comunidade civil e eclesial, porque o Espírito age misteriosamente nas dinâmicas da sociedade” (EG).

Isso, mediante o diálogo, que não é mera troca de ideias, mas um processo profundo e árduo de reconhecimento do outro diferente de mim, de escuta, de deixar-se mudar, de, sobretudo, descobrir juntos a verdade. Diálogo que se abre a todas as pessoas de boa vontade (muitas vezes, portadoras de crenças e valores de que não partilhamos).

Talvez nos surpreendamos com o fato de o resultado mais significativo ter sido, mais do que chegar a concepções consensuais, elevar a qualidade das relações interpessoais. Constataremos que cuidar da vida é também construir pontes…

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