Opinião

Armadilhas da Revolução

Visitei a Nicarágua na década de 1990, algum tempo após a vitória da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Junto com um grupos de outros brasileiros, participei de um Congresso sobre Direitos Humanos, se não estou equivocado. Lembro que com o grupo estavam também os bispos Dom Tomás Balduíno, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Marcelo Carvalheira. Apesar das feridas causadas pelo período revolucionário (1979-1990), o clima geral era de alívio, de paz e de muita, muita esperança. Uma esperança sadia e contagiosa, que transbordava de Manágua para todo o país, e deste para toda a América Latina e Caribe e, quem sabe, para o mundo.

Entre as atividades externas do Congresso, estivemos num encontro do então presidente Daniel Ortega com representantes da população. Esses encontros faziam parte de um programa de governo e podiam ocorrer em uma escola, uma casa de esportes ou uma igreja. Tratava-se de prestar atenção aos problemas e necessidades populares. Nesses dia, fomos convidados a uma das numerosas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Desnecessário recordar como as CEBs haviam contribuído com o processo revolucionário. No encontro, qualquer pessoa podia fazer uma pergunta e o presidente, ou um membro de sua comitiva, se encarregava de responder. Lembro do diálogo, de certas perguntas, de algumas respostas, do interesse da população. Mas o que mais impressionou mesmo foi o próprio canal utilizado. Instrumento rico e cheio de potencialidades como mecanismo para a participação popular. Alicerce para a construção de uma verdadeira democracia, após a ditadura de Anastacio Somoza. Outro fator relevante era a convergência entre cristianismo e o processo de libertação – antes, durante e após a conquista do poder.

Neste momento, e à distância, torna-se difícil entender o que ocorreu de 1990 até os dias de hoje. De que forma o democrata Daniel Ortega de então gerou o ditador Daniel Ortega de agora? Que se passou nas últimas três décadas? Como explicar tamanha mudança? Claro, os fatores que envolvem a sociedade, de modo especial a política e a economia, são sempre múltiplos, contraditórios e complexos. Nesse terreno minado, não existem respostas simplistas ao alcance da mão. Por outro lado, os dados e fatos que nos chegam costumam ser filtrados pelos interesses em jogo.

Cabe, porém, uma tímida reflexão. Nos movimentos sociais, organizações populares e processos revolucionários escondem-se armadilhas. As relações humanas estão permeadas de ambiguidades. Nelas, não raro fazemos confusão entre esperanças e expectativas. Estas últimas respondem aos desejos e anseios imediatos, seja em relação à população, seja em relação aos atores envolvidos, seja em relação ao humor do mercado globalizado. A esperança, ao invés, tenta responder às necessidades básicas e mais urgentes da nação. Por isso, a esperança é marcada pela escuta, a paciência e a reflexão, ao passo que a expectativa não suporta esperar. Tem pressa de mostrar serviço, inaugurar obras, fazer mudanças, multiplicar ações concretas.

A expectativa é incapaz de se deter, de digerir os acontecimentos. Dirige-se logo ao olhar, aos ouvidos, ao toque, ao paladar, ao coração, numa busca frenética e febril de emoções, de sensacionalismo, de espetáculo. Para usar uma imagem do futebol, a expectativa joga para a plateia. A esperança, ao contrário, sabe que é preciso parar, silenciar, ouvir. Procura analisar a situação: diante dos problemas, busca alternativas viáveis de solução, faz com que a plateia participe não somente com aplausos ou vaias, mas com uma contribuição efetiva e eficaz. A expectativa impõe-se como algo bem visível: propaganda, marketinga, imagens, fogos de artirfício. A esperança é invisível. Pressupõe a fé, pois só se espera o que não se vê, mas se crê. “Esperando contra toda a esperança, Abraão acreditou e tornou-se o pai de muitas nações” (Rm, 4,18).

Resulta que o caminho mais curto para o populismo é responder imediatamente às expectativas que estão à flor do tecido social. Do populismo ao nacionalismo e à ditadura, a distância é pequena. Vale a pergunta: em que medida nossas organizações de base, de forma consciente ou inconsciente, desenvolvem o vírus da expectativa em lugar da esperança evangélica? Não podemos reduzir o Evangelho a uma formação social, política e econômica. A Boa Nova de Jesus Cristo inclui, mas ultrapassa qualquer projeto histórico.

 
Padre Alfredo José Gonçalves, teólogo, é o atual Vigário Geral da Congregação dos Missionários de São Carlos (scalabrinianos). Realizou trabalhos pastorais em favelas, cortiços e no interior do Estado com os migrantes cortadores de cana. Foi diretor do CEM-Centro de Estudos Migratórios de São Paulo, assessor do Setor Pastorais Sociais da CNBB, Superior da Província São Paulo dos Padres Scalabrinianos
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