Opinião

A relação entre homem e mulher, entre o poder e o dom

 Arte: Sergio Ricciuto Conte

Em pleno século XXI, persistem em nossa sociedade alguns fatos inaceitáveis com relação à situação da mulher: das desigualdades de renda (elas têm remuneração menor que seus colegas homens) e na condução do lar (elas dedicam-se às tarefas domésticas em média 7,5 horas mais do que seus maridos, apesar de terem uma carga de trabalho comparável nos empregos) até à escandalosa violência sobre a mulher, passando pelo acesso desproporcional- mente reduzido aos espaços de decisão no âmbito corporativo e político.

É a partir desses fatos e de sua pertinácia que nasceram as controversas “teorias de gênero”. Cabe esclarecer que há muitas correntes, que vão dos estudos científicos sérios e fundamentados ao mero panfleto ideológico, discutindo a questão do sexo (diferença biológica entre homem e mulher), da sexualidade (vivência do sexo) e do gênero (expressão e adequação entre sexo e sexualidade pela sociedade). Umas sublinham que o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, a partir do qual busca pensar a história e entender as hierarquias sociais e relações de poder. Outras sustentam que a diferença sexual é efeito das relações de poder e dos discursos sobre gênero e sexualidade. Apesar das diferenças, a maioria compartilha uma mesma posição antropológica.

As “teorias de gênero” partem de uma concepção do ser humano visto em sua individualidade. As relações que ele estabelece seriam funda- mentalmente relações de poder (de opressor e oprimido). Para se emancipar dessa dominação, seria preciso libertar-se de tais laços, “ser dono do próprio nariz” (e do próprio corpo), e não se submeter ao que dita a sociedade. Esse mesmo indivíduo é visto “fatiado” em suas dimensões biológica, psicológica, social e espiritual, sem que elas se integrem harmonicamente. Outra característica de tais posicionamentos – aliás, de muitos saberes contemporâneos – é cada ciência (Filosofia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Neurociências, Biologia…) seguir isolada- mente em suas investigações, sem uma considerar as contribuições das outras.

A discussão sobre esse tema complexo, que acontece na academia e tem reflexos na política e na educação, representa para os cristãos uma oportunidade de contribuírem proficuamente. Penso que possam dar importantes aportes justamente nos pressupostos das citadas correntes. A Antropologia iluminada pelo Cristianismo vê o ser humano de modo totalmente diverso dessa visão reduzida a relações de poder. O Cristianismo vê a pessoa como sujeito livre em sua integridade biopsicossocial e espiritual, e suas relações (consigo mesmo, com Deus, com os outros, com a natureza e com as coisas) como relações de dádiva. Sua identidade é percebida e afirmada justamente enquanto ele se doa. Portanto, a identidade feminina (e masculina), com a consequente assunção de papeis sociais, se dá nessa troca recíproca de dádiva. Além disso, os cristãos podem contribuir num diálogo transdisciplinar, capaz de lançar novas luzes em cada ciência.

O pensamento católico tem páginas sublimes sobre a relação homem-mulher no interior do Matrimônio, amiúde desconhecidas dos próprios cristãos. Mas ainda são poucas as reflexões sobre a relação homem-mulher em outras esferas da vida humana (na Igreja, no mundo do trabalho, na política…). É pouco difundido o pensamento de São João Paulo II, Chiara Lubich, Edith Stein e outros a respeito…

Em tempos em que a Igreja é chamada a sair ao encontro da sociedade contemporânea, inclusive como um “hospital de campanha”, está aí um desafiador horizonte a se descortinar.

 

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