Opinião

A peste

A peste é, sempre, um cavaleiro do Apocalipse. Por causa do conteúdo do livro do Novo Testamento, associa-se a palavra Apocalipse ao fim do mundo, mas, literalmente, ela significa Revelação. A peste, o cavaleiro do Apocalipse, sempre revela algo no momento em que o mundo, ou um mundo, acaba. A peste negra encerrou o mundo medieval, o apogeu da civilização cristã, e abriu a rota da modernidade. No devido tempo, essa modernidade promoveu a desumanização do trabalho via indústria, e a industrialização da vida em geral, incluindo as guerras e os governos, que nunca antes foram tão cruéis e mortais, as primeiras, nem tão brutais e eficientes na submissão das pessoas, os segundos. A mentalidade moderna solapou a fé introduzindo a desconfiança como base da Filosofia e da Ciência, pelas mãos de Descartes e dos empiristas. Deitou as bases de nossa era secular, que não enxerga nenhuma transcendência, nenhuma relação não horizontal, nenhum destino eterno, uma era, pois, que não consegue almejar nada melhor do que evitar mortes a qualquer preço. O mártir cristão, que mostra haver algo além deste mundo pelo que vale a pena morrer, tornouse incompreensível.

A COVID-19, a despeito da nomenclatura burocrático-científica, é a nossa peste. A que mundo ela dá fim? Que mundo novo emergirá ao final da quarentena imposta por Estados que proíbem reuniões em público e se imiscuem na prática da religião sem que quase ninguém reclame? Será o mundo controlado por governos, burocratas e cientistas – agora armados de computadores capazes de industrializar o pensamento – que sempre foi o sonho de comunistas, nazistas e outros utopistas modernos?

Viver é muito perigoso, escreveu João Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”. A frase espanta. Que haja perigos, na vida, entendese. A vida, afinal, é o lugar de todos os perigos e, para o comum dos mortais, perder a vida é o perigo máximo. Deve-se evitar os perigos. Mas dizer “Viver é muito perigoso” aponta para um perigo, e, pois, uma possibilidade, maior ou para além da vida. Ao viver, diz Rosa, algo se arrisca. De modo a tornar possível que fosse melhor para alguém – Judas, por exemplo – não ter vivido.

O mundo em quarentena que a peste atual revela é um mundo avesso a riscos. Apenas aos riscos deste mundo, porém. O tipo de risco – epidemiológico, econômico, social – que a fantasia tecnocientífica julga poder controlar. O homem, porém, nunca terá poder suficiente para não ser mais parte da natureza, da qual, afinal, brotam os vírus. O único risco que o mundo em quarentena e sua cria futura poderá eliminar é aquele de que o Rosa fala e que o mártir, ao morrer, vive. Eliminado esse risco, elimina-se aquilo pelo que vale a pena se arriscar. “E não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma. Temei antes, porém, o que pode lançar no inferno tanto a alma quanto o corpo”, avisou Jesus (Mt 10,28).

A opressora covardia dos líderes mundiais, saudada como prudência e bom senso e gostosamente abraçada pelo apavorado homem que a modernidade criou, anuncia o próximo passo da desumanização do homem: a transformação de todos num cardume criado num aquário administrado automaticamente pela parafernália tecnológica.

Ou o que se anuncia é outra coisa. Nosso bom-senso sempre nos aconselha a não achar que algo é o fim do mundo. Mas, como cristãos, temos que saber que, alguma hora, será o fim do mundo mesmo.

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