Opinião

A Misericórdia e a ‘feliz culpa’

Na Mensagem para a Quaresma de 2020, o Papa Francisco adotou como leitmotiv a interpretação do Mistério Pascal de Cristo como mistério da misericórdia divina, uma grande intuição de São João Paulo II. Segundo a Mensagem, o olhar do coração fixo no Mistério Pascal cria o dinamismo que nos envolve na misericórdia de Deus até o nosso próximo. A partir dessa relação entre Páscoa e Misericórdia, porém, importa dar um passo além para descobrir a positividade do pecado no mistério da nossa salvação, a começar pela célebre expressão “Felix culpa”, que ressoa na liturgia da Vigília Pascal. 
No Catecismo da Igreja Católica (CIC), lê-se: “Por que Deus não impediu o primeiro homem de pecar? Santo Tomás de Aquino responde: ‘Nada obsta a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais elevado após o pecado. Com efeito, Deus permite que os males aconteçam para tirar deles um bem maior. Donde a palavra de São Paulo: ‘Onde abundou o pecado, superabundou a graça’ (Rm 5,20). E o canto do Exsultet: ‘Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor’” (CIC 412). 
Se a “feliz culpa...” já é uma paráfrase de um texto de Santo Ambrósio de Milão (cf. Comentário ao Salmo 39,20), o Exsultet recolhe outra sentença do Bispo e Doutor da Igreja: “De que nos valeria ter nascido, se não nos resgatasse em seu amor?” (In Lucam II, 41). Um experto em Santo Ambrósio, Cardeal Giacomo Biffi, comenta: “Creio ter sido Santo Ambrósio quem, na Tradição Cristã, expressou com maior convicção e vigor que no desígnio de Deus o pecado tem sua preciosa positividade, e, portanto, faz parte do início do projeto que deu existência a este universo de fato existente [...] A consideração do pecado sempre é invocada por ele para que surja e se imponha a atenção à misericórdia divina” (La multiforme sapienza di Dio, Cantagalli, Siena, 2014, p.232).
São impressionantes as linhas finais do Hexaemeron: “Dou graças ao Senhor nosso Deus, que fez esta obra na qual descansou. Fez o céu, não leio que descansou, fez a terra, não leio que descansou, fez o sol, a lua e as estrelas, nem aí leio que descansou, mas leio que fez o homem e então descansou, porque tinha alguém a quem perdoar os pecados” (Santo Ambrósio, Examerão, Paulus, 2009, páginas 277 e 278). Na introdução, explica-se: “A obra do mundo foi concluída na perfeição do homem; nele Deus descansou, porque, sendo misericórdia, tinha alguém para perdoar os pecados; estava assim prefigurado o mistério pascal de Jesus Cristo, que descansou na cruz, redimindo a humanidade” (Toledo, M. O mar de Ambrósio de Milão, Paulus, 2007).
Santa Faustina Kowalska (1905-1938) faz uma declaração semelhante, agora no contexto da instituição da Eucaristia na Quinta-feira Santa, quando Jesus lhe permitiu estar presente na Última Ceia: “No momento da consagração, o amor descansou saciado, o sacrifício fora consumado na sua plenitude [...] a essência está no Cenáculo” (Diário, 684). Essa efusão e perfeita satisfação da misericórdia de Deus pode ser contemplada em cada celebração eucarística, para a glória do seu Nome e o louvor da sua Misericórdia (cf. Sl 48/49,10-11; Sl 113/112,1-3; Ml 1,11). “Exaltar o louvor da misericórdia” é o conteúdo específico do Domingo da Divina Misericórdia, tema do próximo artigo.
Talvez tenhamos de redescobrir – a isto nos exorta a Mensagem do Papa Francisco – que só o conhecimento da “mística” e do “mistério” da divina misericórdia, mediante o olhar fixo no Mistério Pascal, é que de fato poderá enraizar-nos na dimensão concreta das nossas boas obras. 

(Foto: Arte: Sergio Ricciuto Conte) 

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