Fé e Cidadania

A doutrina social e a autoescola

O contexto político brasileiro tem feito muitos católicos procurarem novamente orientação na Doutrina Social da Igreja. Isso é muito bom e positivo, mas traz de volta dois velhos problemas que são: (1) a pouca formação da comunidade cristã em doutrina social; e (2) a contaminação ideológico-partidária na sua interpretação.

O grande problema dos formadores que trabalham com o tema é a ideia, muito difusa, de que a dificuldade reside na falta de conhecimento teórico da doutrina. De fato, a maior parte dos católicos tem uma visão muito superficial dos conceitos do ensinamento social da Igreja, mas esse não é nosso maior desafio.

Grande parte dos conceitos da doutrina social, como o valor da pessoa e da solidariedade, são naturais para quem tem uma formação cristã. O problema é que reconhecer esses valores não nos permite automaticamente aplicá-los, ainda mais em uma conjuntura polarizada e ideologizada como a nossa.

O esforço formativo que acabamos fazendo é muito centrado no oferecimento da teoria e pouco voltado à aplicação prática dos conceitos. Com isso, fazemos como uma autoescola que desse a habilitação para o aluno apenas depois das aulas teóricas, sem necessidade da prática de direção – e, ao perceber que ele não está apto a guiar o carro, aumentasse o número de aulas teóricas em vez de dar aulas práticas.

A comunidade católica em formação, para poder aplicar a Doutrina Social da Igreja em seu cotidiano, precisa ser ajudada pelo formador a ter um discernimento cristão sobre as questões práticas. Isso exige o domínio dos conceitos, integrando o conteúdo teórico com a reflexão aplicada. À medida que os problemas vão se tornando mais complexos e os questionamentos ideológicos mais agudos, o cristão percebe a necessidade de aprofundar a teoria, e descobre a importância de ideias que lhe pareciam pouco úteis ou óbvias inicialmente.

O ponto forte da Doutrina Social da Igreja, se analisada unicamente em seu aspecto de pensamento prático, que a faz superar as grandes correntes laicas da filosofia política, é sua integralidade – a capacidade de reunir elementos positivos normalmente presentes em diferentes correntes teóricas.

Um exemplo clássico é a combinação de opção pelo pobre e reconhecimento do direito da propriedade privada, temas que dividiram esquerda e direita durante boa parte do século XX, e que colocaram a Doutrina Social da Igreja entre as precursoras das ideias de responsabilidade social e de políticas de inclusão – hoje amplamente reconhecidas no mundo laico (cf. Compêndio de Doutrina Social da Igreja, CDSI, 171-184).

Por essa combinação de elementos aparentemente díspares nos debates políticos, a doutrina social raras vezes nos dará uma resposta inequívoca a uma pergunta como “em quem devo votar?”. Na aplicação prática de seus conceitos, sempre haverá espaço para conclusões diferentes – o que não quer dizer que todas as posições sejam aceitáveis. Sempre existirão posições totalmente irreconciliáveis com a dignidade da pessoa e o bem comum. Por outro lado, dificilmente uma posição político-partidária será tão perfeita a ponto de não poder ser questionada e melhorada à luz do pensamento social cristão.

Cabe aos líderes eclesiais e formadores buscarem sempre uma posição de equilíbrio, não querendo impingir à comunidade suas próprias preferências partidárias, mas ajudando cada um a aplicar os princípios da doutrina social para um discernimento integral da realidade, que favoreça o diálogo e a descoberta do bem comum.
 

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