SÃO PAULO

TESTEMUNHO

‘Eu existo para as pessoas’

Por Daniel Gomes e Jenniffer Silva
18 de dezembro de 2019

Marisa Maciel, na Paróquia Santa Cruz de Itaberaba, onde ela vivência a fé cristã, também testemunhada nas ações cotidianas

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Ela chegou no dia e horário marcados, mais precisamente, 11 de dezembro, às 9h. Sentada no primeiro banco, em profundo silêncio e olhando para o altar, fez sua oração pessoal, acompanhada apenas da cruz que ficava à sua frente e da imagem de Nossa Senhora Aparecida à sua direita. Quando percebeu que a equipe de reportagem entrava na igreja matriz da Paróquia Santa Cruz de Itaberaba, no bairro da Freguesia do Ó, concluiu sua prece com o sinal da cruz. Levantou-se, sorriu, e, com um abraço, cumprimentou-nos. 
Ela cresceu nessa comunidade paroquial e, por isso, iniciou a conversa sobre sua história na Paróquia. Filha mais nova de Julia Oltman da Silva, ou, simplesmente, Dona Ju, e de Paulo Maciel, Marisa Maciel Gonçalves, 56, é casada há mais de três décadas com Odilon Oliveira Gonçalves, com quem teve dois filhos: Odilon Paulo e André Estevan.
Ela tem câncer, porém salienta que sua vida não pode ser resumida à doença, pois tem muitas boas histórias para contar.

O DIAGNÓSTICO
No fim dos anos 1980, Marisa foi diagnosticada com um tumor em um dos ovários. Ela precisou retirar essa glândula e também uma pequena parte do fígado. O tratamento foi feito com sessões de radioterapia e o uso de medicações. “Eu fiquei bem. As coisas seguiram, e eu fazia sempre os acompanhamentos devidos”, recordou.
Em 2008, porém, o câncer voltou, alastrou-se e resultou na retirada do útero, do ovário que restara e das trompas, em uma cirurgia feita no começo de 2009. 

‘NÃO SABIA SE IRIA RESISTIR’
Marisa conta que este foi o pior período de sua vida. “Eu realmente confesso que não sabia se iria resistir. Tive depressão seriíssima. Foi o período mais agressivo”, recordou. “Você entra numa introspecção, numa avaliação de vida, com aqueles questionamentos: O que eu fiz? Por que eu? Por que assim?”, afirmou. 
Após a cirurgia, ela começou a ir a sessões de quimioterapia e teve que conviver com as reações do tratamento e as incertezas. “Você perde o cabelo, emagrece, não tem vontade de comer, passa mal o tempo todo. A reação é muito grande. Existe a dor, o mal-estar, todas as reações que a quimioterapia causa”, explica, enquanto mostra algumas fotos dessa época. 

NO HOSPITAL DAS CLÍNICAS
Desde então, Marisa convive com as idas e vindas da doença, e a sua corrida rotina de vida ganhou mais um compromisso: a ida ao Hospital das Clínicas (HC), ao menos a cada 15 dias, para fazer tratamentos, receber medicações ou conversar com os médicos, já que seu câncer, sem motivações hereditárias, e sua resistência à doença têm sido objetos de estudo.
“Às vezes, passo por algum procedimento de análise por um grupo de médicos. Nessas ocasiões, vou para responder questionários e conversar com eles. Em outros momentos, para uma avaliação dos exames. Há monitoramento para ver de ponta a ponta como eu estou reagindo”, detalhou.

RESPEITO AOS LIMITES DO OUTRO
Entre uma atividade e outra no HC, Marisa conhece muitas histórias, faz amigos e descobre que cada pessoa tem um jeito e tempo próprios para lidar com o câncer. Por isso, ela assegura que toda a ajuda que se queira oferecer a alguém deve ser feita sem violar sua privacidade.
“Você precisa respeitar o ambiente do outro. Às vezes, a pessoa somente quer uma conversa para desviar o pensamento do problema. Outras, precisam mais de colo. Cada um tem sua história, a sua realidade de vida. É preciso ter um olhar, um cuidado. Dependendo do estado em que a pessoa está ou do momento de enfrentamento da doença, ela precisa ficar mais introspectiva para se encontrar”, recomendou.
Em uma das sessões de quimioterapia, Marisa conheceu uma jovem judia. “Ela chorava copiosamente quando chegou pela primeira vez, era de doer o coração.” Após algumas sessões, Marisa e Judite trocaram telefones. Um dia, Marisa descobriu que Judite não resistira à doença. Decidiu, então, ligar para o número que tinha. “O marido dela atendeu e disse: ‘Olha, senhora, ela falava muito de você no final. Foi uma pena eu não ter conseguido achá-la’. Eu penso que fui um instrumento para ela, mas sem invadir a sua privacidade. Essa história me marcou muito”, recordou, emocionada. 

VERDADEIRA ESSÊNCIA
Sentada confortavelmente, como quem está na sala de casa, ela conta que foi batizada e recebeu a primeira Eucaristia na Paróquia Santa Cruz de Itaberaba. Mesmo após a descoberta do câncer, não se afastou das atividades paroquiais e atuou por muitos anos no Encontro de Casais com Cristo (ECC) e ainda hoje oferece aos jovens formação e ajuda para o discernimento vocacional. 
 “A fé é o que me sustenta, o que me faz estar aqui hoje. Não me considero uma pessoa especial. Acredito no plano de Deus. Não existe nada que não seja espontâneo para mim. Eu converso muito com Ele para pedir iluminação, discernimento e perdão, pois nós somos falíveis e, muitas vezes, enfraquecemos diante dos desafios”, comentou. 
Foi a aproximação com Deus que lhe permitiu compreender os inúmeros questionamentos durante o processo e as complicações em seu tratamento: “A minha oração é uma conversa muito profunda com Deus. A minha verdadeira essência, só Ele conhece”.

BEM IMATERIAL 
“Quero deixar um legado para as pessoas que me cercam e para os meus filhos, que não serão bens materiais, mas a minha história de vida, as minhas reflexões, as minhas superações e o meu aprendizado. Este é o objetivo maior. E só foi possível com o amparo de Deus”, afirmou.
Há quatro anos, Marisa escreveu o livro “Conversa com o Tempo”, em que, com pequenas crônicas, conta a respeito de sua história desde antes do câncer.
A obra, totalmente independente, será lançada em 12 de janeiro de 2020, na Casa de Cultura da Freguesia do Ó (Largo da Matriz de Nossa Senhora do Ó, 215 ). Toda a renda angariada no primeiro lote será destinada à Associação dos Voluntários do Hospital das Clínicas, pois lá, em tantos anos de tratamento, Marisa testemunhou situações de vulnerabilidade extrema: “A venda vai ajudar pessoas como aquelas que eu vi chegando sem condições para fazer uma quimioterapia, sozinhas, sem preparo estrutural, higienização ou calçado, gente que depois precisa ir embora e não tem recursos financeiros para isso”. 

‘TENHO MISSÕES’
A mulher de 1,79m de altura (descalça – como ela mesma enfatizou aos risos) escolheu como profissão a Pedagogia e especializou-se em Psicopedagogia. 
A comunicação, que é outra grande marca de Marisa, a ajuda desde quando lecionava para adolescentes e lhe é útil ainda hoje com inúmeros projetos e atividades que realiza desde que se aposentou em 2008, como as palestras de orientação familiar na Paróquia.
“Tenho missões, uma delas é cuidar da minha mãe.” Foi neste ponto da entrevista que ela convidou a equipe de reportagem para um passeio. Sua amiga, Cida Santana, que é taxista, conduziu-nos em uma viagem de aproximadamente três minutos até a casa de Dona Ju. 
“Mãe, tudo bem?”, pergunta Marisa, enquanto pede que a equipe espere um pouco antes de entrar no quarto de Dona Ju. 
Somente com a confirmação de que está tudo bem, todos entram, mas Marisa solicita que não sejam feitas perguntas nem fotos. Nos olhos de Dona Ju, é nítida a gratidão por tanto amor que recebe da filha caçula. 
Todos voltam para sala. Marisa mostra um porta-retrato que confeccionou para Dona Ju em 2012, com imagens de quando André, seu segundo filho, nasceu, de sua própria infância e de quando se casou com Odilon.
É servido um café enquanto ela conta que nasceu nesse endereço e guarda inúmeras recordações da infância. Em especial, uma parreira plantada por seu pai, Paulo Maciel, já falecido, no quintal dos fundos da casa: “Eu falo que é um pedaço dele que está aqui”.
Chega a hora de se despedir de Dona Ju, que antes mostra a fotografia do filho mais velho, falecido há oito anos. Ao sair, Marisa pergunta mais uma vez se a mãe está bem e avisa que em breve retornará para vê-la novamente. 

AMIGOS PELO CAMINHO
O próximo destino é a Beg – escola de músicas e artes, também na Freguesia do Ó, onde Marisa assessora uma oficina de escrita criativa à s sextas-feiras. Já na recepção, ela brinca com as crianças. Em uma sala está Eunice Pedrosa, idealizadora do espaço e uma grande amiga. 
Marisa desce um lance de escada que leva até o local que, carinhosamente, chama de “Espaço Zen”, uma parte de reserva ecológica do bairro da Freguesia do Ó, preservado no quintal da Escola Beg. Ao mesmo tempo, recorda fatos da amizade com Nice, como chama a amiga, e dos projetos sociais pautados na área da Psicologia, promovidos por ambas. 
Nice é enfática ao definir Marisa: “Uma empreendedora incansável. Superou vários momentos difíceis em sua vida, não se deixou abalar em nenhum momento. É surpreendente!”.
A pedagoga cresceu na Freguesia do Ó. Entre as muitas pessoas que ela conhece, faz questão de nos apresentar um casal de amigos, Heleno Macedo e Ester Gomes, que ao vê-la chegar, logo a abraça com um sorriso no rosto.
O casal frisou a força pessoal de Marisa que, mesmo diante das dificuldades, emprega o seu melhor em tudo o que faz. Disse, também, que a tem como um exemplo a ser seguido. 

SENTIDO DA VIDA 
A última parada é no número 185 da Rua Hugo Van Der Goes, na Vila Penteado, a casa de Marisa. Ao abrir a porta, ela conta que qualquer bagunça que pudesse ter em sua sala seria resultado de três homens sozinhos na noite anterior, já que ela precisou dormir com sua mãe. 
Na parede em frente à porta, há um altar com todos os presentes que ela recebeu ao longo dos anos de tratamento. Objetos que foram dados para que ela se fortalecesse. 
Marisa entra em um dos quartos, usado como escritório. Os livros nos armários denunciam uma paixão comum entre professores. Ao lado do computador, que hoje guarda todas as páginas do livro “Conversa com o Tempo”, estão muitas folhas com parte de sua história e dos trabalhos que já realizou.
Com a voz embargada, ela quase não consegue concluir a resposta para a pergunta de como define sua vida: “É o próximo! Eu não existo para mim, eu existo para as pessoas. Deus me colocou no mundo com uma missão, com um talento que é a comunicação, a empatia de abraçar causas e batalhar por ações sociais. Assim, fica mais fácil o enfrentamento e entender o que é viver. Viver é o próximo, isso é o sentido maior da minha vida”. 

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