Encontro com o Pastor

As tentações de Jesus e as nossas

O primeiro Domingo da Quaresma sempre nos traz o Evangelho das tentações de Jesus no deserto (cf. Mt 4,1-11). Antes de iniciar a pregação pública da “Boa-Nova do Reino de Deus”, Jesus passou 40 dias no deserto em jejum e orações. Os “40 dias” fazem alusão aos 40 anos que o povo hebreu peregrinou pelo deserto, após a saída do Egito, a caminho da terra prometida.
O povo também foi tentado no deserto e caiu em pecado, rebelando-se contra Deus. Moisés teve muito trabalho para afastar o castigo que Deus aplicaria contra o povo rebelde e desobediente. A tentação é uma constante na história da humanidade e na vida pessoal de cada um. Adão e Eva, nossos primeiros pais, foram tentados no paraíso, deixaram-se levar pelas promessas enganosas do tentador e caíram. Por esse primeiro pecado, todos nós herdamos a marca da fragilidade e estamos sujeitos a cair também nas nossas tentações. As tentações de Adão e Eva, as do povo hebreu no deserto, bem como as de Jesus, são também as nossas.
A realidade da tentação, que nem sempre é levada a sério, é até mesmo ridicularizada. Ultimamente, fez-se troça até das tentações de Jesus. A tentação é algo sério na nossa vida e nos confronta sempre com os grandes valores e referências, que devem nortear nossa vida e nossas escolhas pessoais. No sentido cristão, a tentação tem a ver sempre com nossa relação com Deus e com os valores morais mais fundamentais.
Adão e Eva ouviram da serpente que eles não precisavam obedecer a Deus e que, por si sós, poderiam decidir o que é bem e o que é mal. “Sereis como Deus... e vossos olhos se abrirão”. Depois de caírem na tentação, seus olhos, de fato, se abriram; no entanto, deram-se conta de que “estavam nus”, ou seja, de que tinham sido enganados e nada do que a serpente tentadora dissera era verdade (cf. Gn 3,1-7). Três são os laços (tentações) que a serpente coloca diante de Adão e Eva: a) desconfiar de Deus e pensar que Deus age mal para conosco, ao nos dar seus mandamentos; b) pensar que eles também podem ser como Deus; c) achar que estão acima do bem e do mal e não precisam obedecer a Deus nem à lei moral. Esses mesmos enganos estão presentes também nas nossas tentações.
Nas tentações de Jesus no deserto, o demônio é mais ousado ainda e mostra outro lado perigoso das tentações, muito presente também hoje. Além de insinuar que Jesus deve desconfiar de Deus e pedir uma prova a Deus (“se és o filho de Deus...”), o demônio passa a ideia de que ele próprio é o senhor do mundo (“tudo isso te darei”...) e que pode tudo. A última tentação de Jesus é a mais insidiosa: o tentador pede que Jesus se prostre diante dele e o adore, deixando de prestar adoração e submissão a Deus, para submeter-se inteiramente a ele, o diabo. Essas tentações estão sempre presentes na história humana e, infelizmente, quanta gente já caiu nelas! “Vender a alma para o diabo” ou “fazer pacto com o diabo” são expressões que indicam exatamente isso: a pessoa troca Deus pelo demônio, que promete muita coisa, como se fosse o senhor de tudo. Entretanto, finalmente, ele é o grande mentiroso e enganador. Quem se deixar seduzir por ele, acaba sempre mal.
À primeira vista, nem sempre a tentação aparece como “coisa ruim”. Pelo contrário, o tentador apresenta o objeto da tentação como coisa aparentemente boa e desejável e, até mesmo, necessária. Por isso, é preciso ter o discernimento da fé para não cair em tentação. Como podem ser enfrentadas e superadas as tentações? Jesus, seguido por tantos santos e santas, nos dá o exemplo. É cultivando a comunhão e a sintonia com Deus que se consegue enfrentar as insídias do tentador e discernir sobre o veneno que a tentação contém. Jesus enfrenta o tentador com o jejum, a oração e a Palavra de Deus. Moisés recorda ao povo a sua Aliança com o Deus libertador e salvador e com os Mandamentos. Se não se tem comunhão e sintonia com Deus, vive-se exposto a muitas tentações e ao risco de cair nelas, por faltarem as motivações da fé e a força que vem de Deus para enfrentar toda tentação.
Reconhecer que somos tentados e dar-nos conta do veneno traiçoeiro das tentações é o primeiro passo para enfrentá-las. Todos podemos fazer isso, se cultivarmos a comunhão com Deus mediante a oração, a escuta atenta da Palavra de Deus e a caridade operosa para com o próximo.

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 04/03/2020

LEIA TAMBÉM: Quaresma e conversão missionária

Para pesquisar, digite abaixo e tecle enter.