Editorial

‘Quem guardará os próprios guardas?’

Das Arcadas do Largo de São Francisco, do Território Livre da Academia de Direito de São Paulo”, declamava em 1977 o Professor Goffredo Telles Junior sua célebre “Carta aos Brasileiros”, exigindo ao Poder Executivo o respeito às regras da Constituição – mesmo que atravancassem os indisputados valores da segurança nacional e do desenvolvimento econômico: “Queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito [...] vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade”.

Já dois milênios antes eram estes mesmos ideais enaltecidos como “o vínculo desta dignidade de que fruímos na República e o fundamento da liberdade”, quando Cícero – cuja imagem, aliás, orna hoje o Pátio dos Calouros daquela Faculdade – sentenciava que “somos todos, enfim, escravos das leis, precisamente para que possamos ser livres” (Pro Cluentio, LIII).

Não se trata, aqui, do dura lex sed lex, de um legalismo positivista segundo qual toda e qualquer lei tem de ser seguida, só porque formalmente é lei. Antes, a estima pelo Estado de Direito – aquele “que se submete ao princípio de que governos e governantes devem obediência à Constituição”, como definia Goffredo – é o dar segurança jurídica ao cidadão e previsibilidade às decisões judiciais, minorar subjetivismos e arbitrariedades no exercício da autoridade, e, principalmente fomentar a coesão social e orientar o ordenado conseguimento do bem. É isso que nos torna cidadãos governados por leis, e não por homens (artigo 5º, II da Constituição).

Quando, porém, o Supremo Tribunal Federal (STF) decide “enquadrar a homofobia e a transfobia... nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89” (dita Lei do Racismo), ele rompe com o Estado de Direito, pois nega frontalmente nossa Constituição em ao menos três pontos cruciais – para cuja prova, ainda com Goffredo, “nada mais diremos do que aquilo que... vem sendo ensinado, ano após ano, nos cursos normais das Faculdades de Direito”. Primeiro, porque nenhuma conduta pode ser criminalizada por decisão judicial, mas apenas por lei do Parlamento (artigo 5º, XXXIX). Segundo, porque quando o STF reputa haver inconstitucional omissão legislativa (tal como reputou), sua única atribuição é “dar ciência ao Poder competente (no caso, o Congresso Nacional) para a adoção das providências necessárias” (artigo 103, § 2º) – e não legislar, motu proprio. E terceiro, enfim, porque “é inviolável a liberdade de consciência” (artigo 5º, VI), e uma parte das “criminalizações” deliberadas pela Corte pode ferir esta inviolabilidade – p. ex., os artigos 5º, 7º, 14 e 20 da Lei do Racismo, cuja extensão à homofobia tornaria criminosos os comerciantes que, em regular exercício de sua liberdade de consciência e respeitando a liberdade alheia, simplesmente não desejam se fazer cúmplices de atos da cultura LGBT.

A “guarda da Constituição” compete ao STF – mas apenas “precipuamente” e não exclusivamente (artigo 102). E os romanos já expressavam a falibilidade de toda autoridade humana quando perguntavam “Quis custodiet ipsos custodes?” – “Quem guardará os próprios guardas?”. Diante de abusos cometidos por nossos Ministri, cabe-nos exortá-los, com Goffredo: “O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já”.

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