Opinião

Política, ideais e virtudes

O Brasil entrou numa espiral de polarização e radicalização políticas. As eleições de 2018 marcaram mais uma etapa desse processo. A vitória de Jair Bolsonaro representou uma ruptura em relação ao período de hegemonia “tucano-petista” na chefia do executivo federal. Em que pesem suas divergências, PT e PSDB eram partidos com um histórico comum de lutas. Ambos reuniram as figuras políticas mais expressivas do país das últimas décadas.

O fim das eleições não arrefeceu os ânimos. A polarização e a radicalização continuam se fazendo sentir nos discursos políticos. Para alguns, a única saída possível seria a “luta radical” contra um governo hostil à democracia. Para outros, ao contrário, a democracia estaria ameaçada pela corrupção e pela degradação da vida pública, ambas responsabilidade do establishment político que governou o país durante as últimas décadas. Sob qualquer prisma, as respostas à crise política brasileira seriam radicais. Seria hora do enfrentamento.

O engajamento político radical, qualquer que seja sua matriz ideológica, anseia pela realização de ideais elevados: a emancipação humana, a igualdade, a ordem, a reedificação nacional. Mas será que esses nobres fins podem ser atingidos por quaisquer meios? A história está repleta de líderes políticos que, sob o pretexto de perseguir tais ideais, descuraram dos meios. Na busca pela realização de valores grandiosos, negligenciaram ou esqueceram de vivê-los enquanto governantes e, até mesmo, em suas vidas íntimas. Sob o pretexto da busca por uma nova ordem social, dissidentes políticos foram executados e cidadãos de raça ou classe social específica dizimados. Sob o mesmo pretexto, líderes políticos negligenciaram suas famílias, abandonaram seus filhos e foram infiéis às suas esposas.

É verdade que muitos desses ideais políticos são questionáveis. Alguns se apoiam no retorno a “Eras de Ouro” historicamente inexistentes, outros na busca por experimentos sociais utópicos e incertos. O problema maior não reside no ideal. É possível formular “ideais” críveis e de médio alcance que pareçam atraentes para uma ampla coalizão de grupos sociais. A busca por uma estrutura social mais justa e fraterna seria um exemplo.

O problema não é o ideal político em si, mas sim a ênfase num ideal político entendido exclusivamente como estrutura política ou jurídica fixa. Tal visão desconsidera a importância do caminho a ser percorrido na persecução desse ideal. De pouco adianta a busca por uma sociedade radicalmente igualitária, ou radicalmente livre, se tal busca não se basear num ethos poderoso que oriente o ser humano para o bem. Como escreveu Bento XVI, “quem prometesse o mundo melhor que duraria irrevogavelmente para sempre, faria uma promessa falsa; ignora a liberdade humana” (Spe Salvi, 24). Mesmo que uma sociedade humana atinja uma estrutura mais justa do que as outras, essa conquista só será real se o caminho em si for justo. Ainda que fosse esse o caso, a possibilidade de declínio restaria sempre presente. A história da Igreja assim o atesta. O cristianismo primitivo representou um progresso moral notável em relação à sociedade romana nos séculos III e IV, mas tal progresso sofreu forte inflexão na Europa cristã dos séculos XI e XII.

Essa consideração traz a questão sobre até que ponto a luta por ideais elevados pode ser antagônica à busca por uma vida virtuosa. Será que o reino da justiça universal pode florescer a partir da ação de homens que perseguem injustamente seus adversários? Ou que são injustos no trato com seus familiares? Sem a aquisição de virtudes, a busca por um novo arranjo social seria incerta e inútil. A conquista das virtudes, por sua vez, implica a luta individual – cotidiana, mas heroica – de cada ser humano por ser uma pessoa melhor.

Parece difícil de acreditar que mudanças sociais extraordinárias serão realizadas sem o serem primeiro na vida ordinária. Parece mais razoável pensar, como escreveu um padre espanhol do século XX, que não se pode vencer nas coisas grandes sem vencer primeiro nas pequenas.

 

Fábio Lacerda é professor do IBMEC-SP e da FEI, doutor em ciência política pela USP e pesquisador de pós-doutorado do CEBRAP.
Para pesquisar, digite abaixo e tecle enter.