Espiritualidade

A lebre de oito patas

Em 25 de julho de 1978, dois meses antes de ser eleito Papa João Paulo I, o então Cardeal Albino Luciani, publicou, no Gazzettino de Veneza , um artigo sobre a espiritualidade laical difundida por São Josemaría Escrivá, desde 1928, pela qual os cristãos são chamados a santificar o trabalho, respondendo ao chamado universal à santidade no meio do mundo. Nesse artigo, o Cardeal se referia ao “lendário barão de Munchausen que confabulava a respeito de uma lebre monstruosa com uma série dupla de patas: quatro debaixo do ventre e quatro sobre o dorso. Perseguida pelos caçadores e sentindo-se quase apanhada, ela voltava-se de cabeça para baixo, continuando a correr com as patas frescas. Para o Fundador do Opus Dei é monstruosa a vida do cristão que quisesse uma série dupla de ações: uma feita de oração para Deus, outra de trabalho, de divertimentos, de vida familiar para si mesmo. Não – diz Escrivá – a vida é única, é santificada em bloco. Por isso, fala de espiritualidade “materializada”.

São Josemaría – um dos pioneiros da santificação no meio do mundo – ensinava que não podemos viver uma vida dupla: “Eu costumava dizer àqueles universitários e àqueles operários que me procuravam lá pela década de 30, que tinham de saber materializar a vida espiritual. Queria afastá-los, assim, da tentação, tão frequente nessa época e agora, de levar uma vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas.

“Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor em nossa vida de todos os dias, ou não O encontraremos nunca.”

Em outras palavras, São Josemaría pregava a unidade de vida, em contraposição com a duplicidade de vidas. Essa unidade deve levar-nos a unir o trabalho à oração, ao cultivo da vida cristã no exercício das atividades cotidianas: no trabalho, no meio de transporte, no relacionamento com as pessoas, na vida familiar, profissional, social etc.

Pensemos como o mundo seria diferente se todos tivessem essa consciência e a praticassem: se fossem honestos e sinceros, se os trabalhadores realizassem suas tarefas com profissionalismo e competência, se os professores preparassem com esmero as suas aulas e os alunos fossem verdadeiramente esforçados, se todos fossem fiéis a seus compromissos vocacionais: os casados, os religiosos, os sacerdotes etc. 

O Papa Francisco nos recordou essa doutrina na recente Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate : “Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes, somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra...” (n.14) Mais adiante, dá exemplos bem claros: “Esta santidade, a que o Senhor te chama, irá crescendo com pequenos gestos. Por exemplo, uma senhora vai ao mercado fazer as compras, encontra uma vizinha, começam a falar e… surgem as críticas. Mas esta mulher diz para consigo: “Não! Não falarei mal de ninguém”. Isto é um passo rumo à santidade. Depois, em casa, o seu filho reclama a atenção dela para falar das suas fantasias e ela, embora cansada, sentase ao seu lado e escuta com paciência e carinho. Trata-se doutra oferta que santifica. Ou então atravessa um momento de angústia, mas lembra-se do amor da Virgem Maria, pega no Terço e reza com fé. Este é outro caminho de santidade. Noutra ocasião, segue pela estrada fora, encontra um pobre e detém-se a conversar carinhosamente com ele. É mais um passo.” (n.16) 

Infelizmente, vemos com frequência que muitos católicos se deixam levar pela pressão do ambiente paganizado e se comportam “como todo mundo”. Esse é o grande desafio para o Ano Nacional do Laicato que estamos vivendo na Igreja do Brasil: mais do que nunca, a Igreja necessita de cristãos coerentes e atuantes em todas as dimensões e em todas as circunstâncias de suas vidas. No dia 26 de junho, em que a Igreja celebra a memória de São Josemaría, pedimos a Deus que nos ajude a desempenhar com esmero as nossas atividades e a mantermos a nossa união com Deus em todo momento.
 

Dom Carlos Lema Garcia
Bispo Auxiliar e Vicario Episcopal
para a Educação e a Universidade

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