Opinião

‘Não jogar fora a criança com a água da banheira’

A expressão em inglês, “don’t throw the baby out with the bath water”, significa “não jogar fora a criança com a água da banheira”, traduzindo literalmente. A origem provável dessa expressão remonta à Idade Média, quando as pessoas de uma família usavam a mesma água para tomar banho, começando pelos mais velhos até as crianças. Como a água ficava muito suja, corria-se o risco de jogar fora a água junto com a criança. Ainda que a origem da expressão seja incerta, o sentido é bastante claro e pode ser usado como ponto de reflexão. Isso é o que acontece muitas vezes nas redes sociais: um pensamento crítico exagerado que esquece a história, generalizando um fato e chegando a uma conclusão viciada pelo erro. É exatamente assim que vêm sendo tratadas questões relativas à Igreja e à CNBB. 

A Igreja não é uma sociedade humana, ela é uma realidade mistérica pensada e desejada pelo Pai, fundada no tempo pelo Filho, e que continua na história conduzida pelo Espírito. Enquanto realidade divina, ela é santa e tem a missão de santificar o mundo, pelo anúncio da Boa Nova e pelo testemunho dos seus filhos. Mas os filhos da Igreja não estão totalmente livres de equívocos quando agem por si mesmos e, por isso, às vezes, podem confundir-se com questões estranhas à fé e à doutrina. A carta aos Hebreus (13,9) já apresentava esse risco na Igreja primitiva, e ele continua até os nossos dias. Ao longo da história, sempre que Igreja enfrentou essas situações, os pastores e o povo entraram em oração e súplica para alcançar a clareza da fé, guiados pelo Espírito, escolhendo o caminho da comunhão.

Com o passar do tempo, foi necessário criar estruturas para facilitar e promover a ação pastoral e a vida da Igreja. As conferências episcopais são uma dessas estruturas, que reúnem os bispos de uma região geográfica, como a Conferência dos Bispos da América Latina e Caribe, o Celam, ou de um país, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB. Foi a partir do Concílio Vaticano II que as conferências episcopais passaram a ter um papel mais decisivo na ação evangelizadora e na pastoral. As conferências são organismos de comunhão, que reúnem os bispos para discutir e aprofundar questões que envolvem a ação pastoral comum. A CNBB foi fundada em 1952 e, desde então, vem animando, promovendo e alimentando a ação pastoral e a comunhão da Igreja em todo Brasil.

Recentemente, a CNBB e uma de suas iniciativas, a Campanha da Fraternidade, vêm sendo alvo de críticas, de declarações e de condenações por parte de algumas pessoas. Os vídeos circulam pela internet, são compartilhados e comentados e apresentam fatos isolados e sem uma reflexão mais profunda sobre o que realmente aconteceu. No caso da Conferência, a acusação é de que existe um distanciamento doutrinal e um envolvimento com políticas de esquerda. Portanto, os bispos seriam comunistas e estariam excomungados. Em relação à Campanha da Fraternidade, a questão gira em torno de uma doação para uma ONG que tem atividades contra a vida, e, portanto, o dinheiro para a caridade dos católicos estaria sendo gasto indevidamente. Aqui parece valer o princípio de que contra fatos não há argumentos, mas é preciso perguntar também se essa é toda a verdade dos fatos, antes decretar a sentença condenatória.

Ao longo de sua história, a CNBB tem sido protagonista de muitas iniciativas de defesa do povo, em consonância com a Doutrina Social da Igreja, e isso não é necessariamente adesão ao comunismo marxista. É necessário conhecer o ensinamento dos padres da Igreja e também dos papas antes de falar em excomunhão dos bispos. É preciso recordar iniciativas como o projeto “Ficha Limpa”, que movimentou a Igreja em todo o País e contou com o apoio da Conferência dos Bispos. A Campanha da Fraternidade, que começou em 1964, já trabalhou temas sociais importantes e também é protagonista de muitas inciativas de promoção humana, mas nenhuma delas aparece nos vídeos que circulam. Se houve equívoco quanto ao repasse de verbas, é preciso apurar o fato e corrigir o que for necessário. 

Mas os críticos, entre eles até padres, preferem assumir os papéis de promotores de acusação, de jurados e juízes, atuando num tribunal em que eles são os baluartes da verdade e da doutrina e donde ninguém escapa, nem o Papa. Parece que eles desconhecem completamente dois conceitos fundamentais para a Igreja, que são a comunhão e a reconciliação. No exercício da comunhão, pastores e fiéis não estão em lados opostos ou muito menos concorrentes: cada qual ocupa o seu lugar, trabalhando sob a ação do mesmo Espírito e no mesmo corpo, que é a Igreja. A reconciliação é um dom para a Igreja, porque permite a conversão diante dos erros, e vale para todas as pessoas. Não podemos nos esquecer também que as instituições têm a sua parte humana. Como filhos da Igreja, não vamos correr o risco de jogar fora a água e, com ela, a criança.
 

Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de São Paulo e
Vigário Episcopal para a Pastoral da Comunicação
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