Fé e Cidadania

Direito de propriedade individual e a destinação universal dos bens

A questão do direito de propriedade ou mais precisamente, da propriedade privada, é um tema que acompanha a história do Cristianismo, mas sem a urgência que ganhou com os movimentos socialistas que a acusava de ser a origem de todos os problemas sociais enfrentados pelos deserdados da Terra. 

Nos primórdios do Cristianismo, a propriedade privada convivia com a propriedade comunal, sem que a existência da segunda colocasse em xeque a legitimidade da primeira. São Tomás de Aquino, a partir de Aristóteles, defende a sua legitimidade, ao mesmo tempo em que reafirma que tudo a Deus pertence.

O grande pensador liberal John Locke apresenta a defesa mais conhecida do direito de propriedade individual, fundado no trabalho, ou seja, no reconhecimento que todo homem é proprietário da sua própria pessoa, o que lhe permite trabalhar e obter os recursos necessários para adquirir sua propriedade individual. 

A Encíclica Rerum Novarum (RN), do Papa Leão XIII, reflete, como era de se esperar, o momento histórico em que foi publicada. É isso que explica a ênfase da sua defesa do direito de propriedade individual e ecos do argumento lockeano: “a razão intrínseca do trabalho compreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que possuirá como próprio” (RN 4). Um outro aspecto importante é reconhecer que “a propriedade particular e pessoal é para o homem um direito natural” (RN 5). A conclusão do argumento é que “fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer para todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo, é a inviolabilidade da propriedade particular” (RN 9). 

Uma leitura apressada poderia levar à falsa conclusão de que Leão XIII estaria apresentando uma defesa do direito absoluto da propriedade particular. Na verdade, em uma passagem em que discute o excesso de encargos e impostos, reconhece que “a autoridade pública não pode, pois, abolir [a propriedade individual]”, mas “pode regular-lhe o uso e conciliá-lo com o bem comum” (RN 28). Em outras palavras, ele apresenta o argumento que estará presente nos documentos subsequentes sobre o tema: a subordinação do direito à propriedade individual a destinação universal dos bens. 

É possível argumentar que a destinação universal dos bens seria a lei natural absoluta, enquanto que o direito à propriedade individual seria a relativa (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI, 177ss).

A aparente contradição entre a duas se resolve com a disseminação do direito da propriedade individual ao maior número de pessoas. A concentração da propriedade nas mãos de poucos seria um empecilho ao bem comum (como reconhecido em todas as leis antitruste existentes no mundo e nos esforços dos países para redistribuir a renda), assim como a propriedade estatal, se não estiver a serviço do bem comum. 

A propriedade individual não é um direito absoluto, mas um meio para se atingir uma sociedade mais justa e que pode ser traduzida em um modelo de desenvolvimento econômico centrado na pessoa humana, que combine a busca pelo lucro, necessário ao bom funcionamento da economia, com o respeito à dignidade da pessoa humana. Traduzir esse objetivo para esfera política é o grande desafio do político cristão.

 

As opiniões da seção “Fé e Cidadania” são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do O SÃO PAULO.

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