Editorial

O realismo exigido pelo amor

Em uma decisão recente, a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criou novas normas com relação à chamada “paternidade socioafetiva”. Trata-se do reconhecimento da paternidade por alguém que não tem laços biológicos com a criança, possibilidade que implicava um processo judicial e que, a partir de agora, poderá ser feita em cartório, mediante o reconhecimento voluntário da paternidade (ou da maternidade) por parte do adulto.

Pais e mães sabem o que um filho significa para nossa humanidade, quanto de doação e entrega nos exigem, quão bem nos fazem. Assumir um vínculo de paternidade ou de maternidade sem o laço sanguíneo é, sem dúvida, um dos mais belos sinais de amor que uma pessoa é capaz de fazer. Tudo que a sociedade puder fazer para reconhecer e apoiar um gesto como esse, de afeto sincero, deve ser feito.

Paradoxalmente, contudo, a delicadeza dos sentimentos envolvidos e a multiplicidade e a complexidade das situações existentes exigem muito cuidado na consideração de cada caso. Conforme mostrado na reportagem publicada nesta edição do O SÃO PAULO , uma decisão irrefletida ou mal avaliada, ainda que cheia de boas intenções, poderá criar futuras situações de constrangimento para a criança, injustiça para os pais biológicos e dificuldades objetivas para todos os envolvidos.

Os possíveis problemas aconteceriam principalmente em situações em que se quebra o vínculo interpessoal que unia a mãe ou o pai socioafetivo à criança (por exemplo, num caso de separação do casal) ou que o genitor biológico deseja retomar o vínculo perdido com seu filho. Como a paternidade socioafetiva, pela nova legislação, não só se equipara, mas também se sobrepõe à biológica, tornouse muito complexo reconhecer essas novas situações, podendo trazer dor e constrangimento para a criança.

Processos judiciais costumam ser lentos e relativamente caros no Brasil. É natural que os envolvidos num caso de paternidade socioafetiva queiram simplificar sua tramitação. É justo que se procure fazer todo o possível para que essa facilitação aconteça. Contudo, isso não evita a necessidade de um olhar realista e abrangente sobre os vários fatores e possibilidades existentes nessas situações, sob o risco de se chegar a um resultado oposto ao desejado.

Para que o amor seja reconhecido e acolhido, dando todos os frutos que potencialmente possui, não basta boa intenção. É preciso um olhar realista sobre a realidade, que reconheça os limites e os perigos de cada situação. As comunidades cristãs, ao longo de séculos de história, vão aprendendo, com a graça de Deus, a discernir melhor essas situações. O que, à primeira vista, pode parecer objeção ou preconceito, muitas vezes é a sensatez e o realismo de quem já assistiu a muitas coisas e tem a sabedoria de um olhar cheio de amor por todos os envolvidos.
 

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