Opinião

Você tem fome de quê? De tempo!

Arte: Sergio Ricciuto Conte

 Outro dia, na saída de um evento, deparei-me com três potinhos nos quais os participantes tinham que es- colher um deles e depositar sementes de feijão para responder à frase colada ao vidro: você tem fome de quê? Num dos potinhos estava escrito: de cozinhar (era um evento sobre nutri- ção), mas estava quase vazio (salvo alguns aficionados...). O que estava cheio até à borda dizia: de tempo!

A grande fome de hoje é a fome de tempo! Mas, o tempo é algo de que podemos dispor com a nossa liberdade. Está à nossa mão e ao nosso dispor. Santo Agostinho dizia que o tempo existe no espírito do homem, é uma extensão do nosso espírito. É em nosso espírito que reside a memória do passado, a intuição do presente (o presente do presente) e a espera do futuro. Então, ele depende essencialmente da nossa liberdade!

Mas quem roubou o nosso tempo? Por que ele escapou de nossas mãos?

Um escritor do Leste Europeu, Václav Belohradsky, nos dá uma pista. Ele diz: “Poderíamos sintetizar assim a essência daquilo que nos ameaça: os Estados pro- gramam seus cidadãos; as indústrias, seus consumidores; as editoras, seus leitores etc. Toda a sociedade, aos poucos, torna-se algo que o Estado produz” (L’ Altra Europa, 1986, apud L. Giussani “O eu, o poder, as Obras”, São Paulo: Cidade Nova, 2001). Podíamos acrescentar: a televisão, seus telespectadores; o Facebook ou Instagram, os seus visualizadores.

Somos cada vez mais definidos por um poder externo à nossa vontade e que vem de fora. Que pretende determinar nossa fome e nossos desejos, oferecendo desejos que não são realmente satisfatórios ou conforme à medida do nosso coração. Estamos sempre fora de nós mesmos e assim perdemos o TEMPO que é essencial- mente nosso. Somos cada vez menos criativos e cada vez mais passivos, vítimas de um tempo que não foi de- terminado por nós e, por isso, cada vez mais desnorteados e vazios. É comum ouvir de quem trabalha com crianças que sofrem com obesidade, frases do tipo: ‘Eu preciso sentir a boca cheia’. Esses profissionais relatam que essa sensação parece preencher o vazio, a tristeza, o tédio e a carência afetiva que as crianças descrevem sentir.

A coisa mais importante a fazer é entender o problema, a armadilha que a sociedade moderna e o poder nos fizeram entrar. E retomar o nosso TEMPO em nossas mãos. Escolher aquilo que preenche nossas almas, e não nossas bocas, ou nos iludem com sensações prazerosas momentâneas, mas que incrementam o vazio logo que passam. E o que preenche nossas almas?

A tradição da Igreja, em particular dos monges, nos ensina muitas coisas a esse respeito. Em um livro, extremamente didático “O Céu Começa em Você” (Petrópolis: Vozes, 1998), A. Grun explica que o primeiro passo é reservar diariamente um tempo (meia hora, por exemplo) para ficar quieto, e aprender a permanecer em si mesmo. Assim, quando a turbulência interior, que é como uma água em grande movimento (lembra da corre- ria e falta de tempo que agita tudo?), se aquietar, vou começar a enxergar, a entrar no âmago dos meus pensa- mentos e discerni-los (a água sem movimento reflete meu verdadeiro rosto). E, aos poucos, aparecerá quem sou eu, o que realmente desejo, o que me incomoda e o que devo fazer. Os pensamentos e sentimentos maus e os bons virão à tona e poderei tratá-los com a oração e iniciar um processo de cura em direção à paz, que é o que o nosso coração mais anseia.

Nessa nova condição de vida, descobriremos que o tempo se amplia e aumenta de forma surpreendente e que temos tempo de fazer tudo o que nos alegra e nos é necessário. Veremos que quem fez o mundo o fez em ordem e não em uma desordem. E descobriremos, como ensina Santo Agostinho, que o tempo, na verdade, é uma dimensão do nosso espírito.

 

As opiniões expressas na seção “Opinião” são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editorais do jornal O SÃO PAULO

 

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