Opinião

Uma profecia quase esquecida

Um mundo preocupado com a preservação do planeta e fascinado com o avanço da ciência e de suas possibilidades técnico-industriais exigia uma resposta da Igreja. Uma nova visão sobre as relações humanas, especialmente sobre a sexualidade, desafiava a visão moral tradicional do catolicismo. Diante da sugestão de mudanças de uma comissão formada por teólogos, cientistas e experts, o Papa foi firme: “Na missão de transmitir a vida, (os casais) não são livres para procederem a seu próprio bel-prazer, como se pudessem determinar, de maneira absolutamente autônoma, as vias honestas a seguir, mas devem, sim, conformar o seu agir com a intenção criadora de Deus, expressa na própria natureza do matrimônio e dos seus atos e manifestada pelo ensino constante da Igreja”. Começava há cinquenta anos, a se completarem em 25 de julho próximo, a dramática trajetória da encíclica Humanae Vitae, com que o Papa Beato Paulo VI proibiu o uso de anticoncepcionais.

Paulo VI sabia aonde estava indo: “É de prever que estes ensinamentos não serão, talvez, acolhidos por todos facilmente: são muitas as vozes, amplificadas pelos meios modernos de propaganda, que estão em contraste com a da Igreja.” Talvez o Papa não imaginasse o grau de oposição que sofreria por parte de seus próprios irmãos no episcopado. O parecer favorável à pílula preparado pela comissão de estudos foi vazado para a imprensa e publicado simultaneamente em francês pelo jornal Le Monde, ligado então ao Partido Socialista, por The Tablet, jornal católico do Reino Unido e pelo National Catholic Reporter, dos EUA. A Conferência Episcopal Americana lançou, ainda em 1968, um manual autorizando a discordar da Humanae Vitae. Paulo VI foi vítima de um ostracismo virtual por boa parte dos cardeais alemães, franceses, belgas e holandeses - o chamado Bloco do Reno, que foi muito influente durante o Concílio Vaticano II.  

“Não é preciso ter muita experiência para conhecer a fraqueza humana e para compreender que os homens - os jovens especialmente, tão vulneráveis neste ponto - precisam de estímulo para serem fiéis à lei moral e não se lhes deve proporcionar qualquer meio fácil para eles eludirem a sua observância”, escrevia o Papa em 1968, ano em que a indisciplina, a irreverência e a desconfiança contra quem tivesse “mais de trinta anos” punha os jovens na rua gritando que era “proibido proibir.”  “É ainda de recear que o homem, habituando-se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e psicológico dela, chegue a considerá-la como simples instrumento de prazer egoísta e não mais como a sua companheira, respeitada e amada.”

É fácil perceber, cinquenta anos depois, que o Papa estava certo. A pílula permitiu a revolução sexual. O medo da superpopulação, que deu início, no fim dos anos sessenta, a uma série de previsões catastrofistas de ambientalistas, deu péssimo resultado. Inundado de pílulas, o continente europeu viu sua taxa de crescimento diminuir até os níveis de hoje, quando todos os países têm taxa de natalidade menor do que a necessária para manter a população. A paisagem de uma Europa estéril se vê transformada pelo pipocar de mesquitas.

Não há muito o que comemorar no cinquentenário da Humanae Vitae. Mas é, mais que nunca, necessário resgatá-la do esquecimento prático em que foi posta por uma igreja que se acostumou com a ideia de que pode haver uma dissidência militante em seu seio.

Arte: Sergio Ricciuto Conte
 
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