Opinião

Uma chaga a ser amada

Uma das chagas de nossa sociedade e de nossa cidade que, de tanto em tanto, aparece nos noticiários são as “cracolândias”. Os prefeitos e suas equipes tomam medidas, motivados e orientados por próprios sistemas de crenças e valores, num exercício quixotesco. Os recentes episódios envolvendo a “cracolândia” da região da Luz suscitam algumas reflexões a respeito.

Como encaramos as “cracolândias”?  Um problema que requer urgente solução? Questão de saúde pública, de segurança, de urbanismo… (com soluções segundo a própria perspectiva: internação, polícia, remoção)? Vem-me à mente a experiência, narrada no livro Presença no inferno (São Paulo: Cidade Nova, 2014), do amigo e sacerdote Renato Chiera, de ir ao encontro dos “cracudos” no Rio de Janeiro. Experiência que não diferirá daquela de tantos da Pastoral da Rua, da Comunidade Missão Belém, da Fazenda da Esperança e muitas outras…

Aprendo com ele que os drogadictos não são um problema: são seres humanos! E que há entre eles um denominador comum: uma ferida profunda pela falta de amor, traduzida em violências física, psicológica e simbólica, perpetradas até no seio familiar. Também aprendo que é justamente nas “cracolândias” que eles encontram uma “família”. Ali, entre pessoas de todas as camadas sociais e níveis de instrução – o crack é uma droga “democrática” –, já tendo perdido tudo, amiúde até a dignidade, aceitam- se mutuamente como são, sem críticas nem cobranças – infelizmente encontradiças nos ambientes “de bem”.

Do que essa gente precisa, me ensina Padre Renato, é que sejam amadas, escutadas, abraçadas e que sintam que estamos com elas. Assim amadas, também poderão vir a pedir ajuda para recomeçar a vida – que é bem mais do que desintoxicar-se; trata-se de voltar a ser sujeito da própria existência, trabalhar, ser cidadão, amar…

Será que o Estado dá conta dessa tarefa? Experiências como a de Chiera mostram que lidar com situações de vulnerabilidade extrema requer uma “alma”, uma “motivação intrínseca” – religiosa ou não. Entendo que o Estado, instituição burocrática em sentido weberiano, não as possui (ainda que muitos servidores públicos trabalhem motivados por uma “alma”). Por isso, creio que organismos inspirados por valores tenham aqui um papel insubstituível.

Para os cristãos, essa alma está em reconhecer no povo da “cracolândia” o rosto de Jesus que, na cruz, clama: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Amam este Jesus amando os drogadictos e, amando os drogadictos, amam Jesus.

Chiara Lubich é uma das mestras no amor a Jesus crucificado e abandonado. Inspira-me uma sua prece: “Senhor, dá-me todos os que estão sós… Senti no meu coração a paixão que invade o teu, por todo o abandono em que o mundo inteiro nada. Amo todo o ser doente e só… Quem consola o seu pranto? Quem tem pena de sua morte lenta? E quem estreita ao próprio coração o coração desesperado? Meu Deus, faze que eu seja no mundo o sacramento tangível do teu Amor, do teu ser Amor: que eu seja os braços teus que estreitam a si e consomem no amor toda a solidão do mundo”.

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