Opinião

Por que joio e trigo devem conviver até a colheita?

De início, cada pessoa, grupo ou cultura é terreno fértil para o joio e para o trigo. Basta um olhar ao próprio coração, à família ou a qualquer organização para dar-se conta de que trigo e joio integram a condição humana. Misturam-se a ponto de ser impossível destruir um sem afetar o outro. Em geral, sofremos de uma dicotomia crônica, que opõe os bons e os maus como adversários. Uns estão do lado de dentro do muro imaginário, os outros estão do lado de fora. Como se o mundo fosse dividido nitidamente entre “nós” e “eles”: conhecidos e estranhos em campos diversos e adversos. O certo é que a linha divisória entre o bem e o mal passa pelo interior da própria pessoa.

Esse dualismo tende a ser cego para a ambiguidade intrínseca ao ser humano, a associação ou a comunidade. Supõe que as incongruências e contradições estão sempre do lado contrário. Daí o corte taxativo entre puros e impuros, santos e pecadores, fiéis e infiéis, salvos e perdidos... Estamos aqui a um passo do fanatismo, do extremismo e do fundamentalismo, sejam tais “ismos” de ordem política, ideológica ou religiosa. Daí a discriminação, a intolerância e a perseguição – para não falar da violência e da guerra. 

Depois, joio e trigo devem conviver juntos, pois no jogo complexo das relações humanas e socioculturais, a erva daninha pode superar o próprio veneno e transfigurar-se em planta benéfica. E esta, por sua vez, pode regredir à condição de erva daninha. Toda travessia comporta a probabilidade de um processo de conversão. No percurso da existência, ninguém está definitivamente condenado e ninguém definitivamente salvo. Daí a importância de deixar aberta a porta a possíveis mudanças de rota e de meta. Cortar o joio precocemente significa tolher de uma vez por todas uma eventual regeneração. De um ponto de vista da fé, significa fechar o campo à ação do Espírito Santo na trajetória histórica da pessoa ou da cultura.

O terceiro aspecto põe em cena a solução evangélica do Mestre: deixem que joio e trigo cresçam até o tempo da colheita. Então, torna-se maduro um julgamento integral, pois todas as cartas já foram jogadas: experimentadas todas as tentativas de resgate. O velho sábio dizia que “a vida é a arte de escrever sem borracha”. E o dito popular acrescenta: “fruto que se colhe cedo demais amarga na boca, fruto que se colhe tarde demais amarga no estômago”. O julgamento e a punição, porém, não pertencem aos homens, mas a Deus, por meio dos anjos, os mensageiros de Deus. Como lembrou o Papa Francisco, “quem sou eu para julgar?” Qualquer juízo antecipado pode induzir ao erro, tanto na condenação quanto na salvação. Somente o Senhor da história tem o poder de emitir a sentença definitiva. Os julgamentos humanos serão sempre provisórios. 

Conclui-se que os fios invisíveis na trama das relações humanas – fazendo, desfazendo e refazendo o tecido social – se mesclam, se confundem e se alternam. O bem e o mal, tal como o choro e o riso, coexistem lado a lado. Além disso, quem pode decidir o que é bom e o que é mau? Que critérios, leis e costumes usar? Na sociedade cada vez mais “líquida” (Bauman), onde encontrar referenciais pétreos? Só no fim do percurso histórico será possível saber o que permaneceu joio, e deve ser queimado, e o que permaneceu trigo, e deve ser preservado. Nas etapas intermediárias, o bom senso, a busca do bem comum e as instituições reguladoras recomendam o respeito à dignidade, aos distintos valores e à solidariedade entre pessoas, povos, culturas e nações.

Arte: Sergio Ricciuto Conte

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