Comportamento

A realidade que se afasta

Atentamente, ouvi a narrativa de um jovem que retornava de uma experiência de dois dias de um encontro de formação espiritual. Com fala pausada e baixa, uma certa tristeza no rosto, foi relatando diversos depoimentos dos participantes sobre episódios que, direta ou indiretamente, havia conduzido cada um deles para aquele local. Histórias carregadas de emoções das misérias da vida, a ponto de fazer chorar, com frequência, os que participaram do encontro.

A conclusão do jovem narrador é que, apesar de já ter conhecimento dos temas dos fatos relatados, a experiência de vivenciá-los com seus respectivos protagonistas despertava sentimentos totalmente diferentes. Recordei-me da antiga expressão “ao vivo e a cores”, atualmente um tanto desconhecida, diante desta realidade tomada pelo virtual, que inunda o cotidiano. O que aquele jovem tinha ouvido não eram relatos procedentes de notificações no Facebook, de mensagens de WhatsApp ou de outros veículos semelhantes. As cenas não eram produzidas por grandes atores de Hollywood, com músicas magistrais ao fundo. O roteiro não era dirigido por grandes cinegrafistas. Assistia-se ao fato real, despido de maquiagens e sem o distanciamento do noticiário de acontecimentos distantes.

Vive-se hoje uma realidade tão virtual que principalmente os jovens estão perdendo o contato com as pessoas de fato. Assiste-se a tanta maquiagem, que se esquece a reação que provoca a narrativa expressiva de alguém que fala do que aconteceu consigo em viva voz. Acostuma- -se a desligar por um toque na tela uma mensagem que esteja muito longa ou que deixa de ser interessante, ou que provoque desconforto, e assim, perde-se a paciência de se ouvir até o fim alguém com a necessidade de conversar, de falar de si, na sua velocidade e modo de ser. O caso concreto naquele encontro não permitia abandonar o local sem deixar de ser notado, revelando um pouco sobre a sua falta de solidariedade ou incapacidade de poder ajudar.

Parece estar ocorrendo a omissão de um “choque de realidade” em tantos que estão assistindo ao mundo pelo celular: sendo atropelados, caindo nas valas do Metrô, tropeçando em escadas rolantes ou calçadas esburacadas. O nosso jovem já conhecia o que ouvira, mas faltava estar presente de corpo e alma aos acontecimentos, na companhia próxima das pessoas. Aquilo, de certa maneira, o assustou, o perturbou, fez com que refletisse, mas também o fez crescer e avançar. Não basta ficarmos atônitos com as circunstâncias que nos desagradam, é preciso reagir, transformar-se, tomar um novo caminho que comprometa o sentido da vida.

Ao término do nosso encontro, foi isso que percebi nos olhos, ainda marejados, daquele rapaz na recordação das narrativas que fizera. As lágrimas não podem ser enxugadas com lenços descartáveis que para nada servem, mas devem regar o solo da alma, que se torna fértil para sementes de virtudes que transformam o ser humano. Daquela experiência, partiu a decisão de ir ao encontro do outro, de ouvir com paciência e solidariedade, sem pré-julgamentos ou juízos arraigados em valores pessoais sem flexibilidade à existência dos demais. Daquele encontro com pessoas desconhecidas, até então, surgiu a percepção de que não podemos nos isolar e de que o que parece só estar acontecendo consigo, muitas vezes, não é mais do que o silêncio envergonhado que se faz para não se deixar ajudar.

Principalmente as grandes cidades, às vezes, reservam em seus condomínios fechados e seguros uma bolha hermeticamente fechada ao mundo, que só se apresenta em telas digitais como uma realidade que não diz respeito a quem não está lá. Nessas bolhas, crescem crianças, adolescentes e jovens que não sabem como se comportar diante da realidade que está a poucos metros deles, mas distanciados por muros tão altos, que parece não existir. Contudo, esses muros não são construídos somente em condomínios, mas em todos os lares em que, independentemente da classe social e econômica, as pessoas estão se distanciando cada vez mais umas das outras; vivendo cada uma em “seu mundo”. É necessário que os pais estejam atentos para que seus filhos entendam que todos fazemos parte da humanidade, e que cabe a cada um procurar conhecer e oferecer, dentro de suas condições, uma ajuda que propicie um mundo melhor para todos.

Dr. Valdir Reginato é médico de Família, professor da Escola Paulista de Medicina e terapeuta familiar. E-mail: vreginato@uol.com.br
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