Igreja trabalha pela reconciliação entre as duas Coreias

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16 de novembro de 2017

De volta ao Brasil após participar do Fórum Internacional para a Partilha sobre a Paz, promovido entre os dias 3 e 7, pela Arquidiocese de Seul, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo Metropolitano, concedeu entrevista ao O SÃO PAULO a respeito dos propósitos do evento e sobre a realidade da Igreja na Península da Coreia. Leia a seguir a íntegra da entrevista. 

 

O SÃO PAULO - O FÓRUM PARA A PARTILHA SOBRE A PAZ FOI PROMOVIDO PELA ARQUIDIOCESE DE SEUL, NA COREIA DO SUL, DE 3 A 7 DE NOVEMBRO. QUAIS OS MOTIVOS PRINCIPAIS PARA ESSA INICIATIVA?

Cardeal Odilo Pedro Scherer - A iniciativa visou a partilha de experiências sobre a edificação da cultura da paz. Vários convidados, cardeais, bispos e leigos da América Latina falaram sobre a maneira como a Igreja contribuiu, e ainda contribui, para a superação dos conflitos nos diversos países. Dessa maneira, a Arquidiocese de Seul quis promover uma reflexão sobre o papel daquela Igreja local para a superação do conflito entre as duas Coreias e das tensões internacionais presentes naquela parte da Ásia. De fato, existe no povo a percepção do grave risco para a paz, não apenas para a Coreia, mas de um conflito perigoso e destruidor, que poderia envolver vários outros países da região, como o Japão, a China e a Rússia, além dos Estados Unidos. Portanto, a Igreja de Seul, ao tomar essa iniciativa, deseja fomentar a cultura da paz e da reconciliação entre as duas Coreias.

 

O SENHOR PARTICIPOU DESSE FÓRUM E, INCLUSIVE, PROFERIU UMA CONFERÊNCIA. QUAL FOI O MOTIVO DESSE CONVITE E O TEMA DA CONFERÊNCIA?

A cada ano, na promoção do Fórum, são convidados bispos e outras personalidades de um continente diverso para a partilha de iniciativas de paz em seus países. Dessa vez, foram convidadas pessoas da América Latina. Além de mim, estiveram o Cardeal de São Salvador, em El Salvador, Dom Gregorio Rosa Chávez; o Arcebispo de Morelia, no México, Dom Carlos Garfias Merlos; o Ex-Embaixador argentino no Brasil e na Santa Sé, Dr. Vicente Espeche Gil; e o jurista e professor colombiano, Dr. José Gregorio Hernández Galindo. Também participaram dos debates e mesas-redondas vários estudiosos e personalidades públicas locais. Foi um evento muito rico de abordagens e de experiências sobre a contribuição das Igrejas locais para fomentar a paz. Na minha exposição, apresentei, primeiramente, alguns pressupostos que orientam a ação da Igreja em favor da paz, como o próprio conceito bíblico e cristão de paz, a verdade, a justiça, o respeito à dignidade da pessoa e aos direitos humanos, além do perdão e da “purificação da memória”. E partilhei a experiência da Igreja no Brasil na superação do regime militar, do empenho da CNBB e, de maneira especial, do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e de Dom Helder Câmara. O motivo do convite, provavelmente, foi o fato de o Cardeal de Seul e eu participarmos de reuniões na Santa Sé, onde nos conhecemos. Era importante que também a ação da Igreja no Brasil fosse partilhada no Fórum.

 

QUE OUTROS TEMAS FORAM ABORDADOS?

Cada um dos demais convidados partilhou as iniciativas em favor da paz em seus países. O Cardeal de El Salvador falou do testemunho de Dom Oscar Romero; o Arcebispo de Morelia tratou da ação da Igreja na superação da violência decorrente do tráfico de drogas, sobretudo na área fronteiriça com os Estados Unidos; o Ex-Embaixador da Argentina falou do empenho diplomático da Igreja, sobretudo na superação do litígio da Argentina com o Chile sobre a área do Canal de Beagle e da Terra do Fogo; mas falou, também, do êxito favorável no diálogo entre Argentina e Brasil em relação aos projetos nucleares de ambos os países, depois da superação dos respectivos regimes militares. Nas mesas-redondas, com a participação de personalidades locais da Coreia, tratou-se de tirar as consequências das exposições feitas para a situação da própria Coreia. Houve vários momentos de entrevistas para a repercussão do Fórum na opinião pública local.

 

QUEM PARTICIPOU DO FÓRUM E QUAIS FORAM OUTROS MOMENTOS RELEVANTES? 

Além dos convidados para falar e participar dos debates, estiveram presentes bispos, padres, religiosos e diáconos, embaixadores de vários países, estudantes da Faculdade de Teologia, jornalistas e outros interessados. O Fórum possui um comitê permanente, que promove estudos e divulgações sobre os temas ligados ao Fórum. Houve, também, o envolvimento do povo de várias paróquias, onde os cardeais e bispos celebraram. O povo se interessou também em várias iniciativas para se envolver de maneira constante e permanente na cultura da paz e da reconciliação. A Igreja coreana tem a consciência de que, além da esperada superação da divisão, é preciso preparar a sociedade para a acolhida, o diálogo, o perdão e a efetiva consolidação da fraternidade e da paz, que não pode contar com vencidos e vencedores, mas com reconciliados. 

 

TRATOU-SE DE UMA INICIATIVA ISOLADA OU O FÓRUM ESTÁ RELACIONADO COM OUTRAS ATIVIDADES OU INICIATIVAS QUE SE PROPÕEM AO MESMO OBJETIVO?

Não foi uma iniciativa isolada, mas há um comitê permanente, que promove diversas iniciativas ao longo do ano, para o estudo de problemas e para fomentar a cultura da paz. Além disso, na Coreia do Sul, a Igreja promove iniciativas de apoio aos pouquíssimos católicos remanescentes no Norte, que estão sempre em perigo de perseguição e até de martírio; mas também de acolhida e de inserção social daqueles que conseguiram sair do Norte – cristãos ou não. E promove a oração e a penitência em favor da reconciliação e da paz.

 

QUE FRUTOS SÃO ESPERADOS DO FÓRUM?

Naturalmente, espera-se que a Coreia volte a ser um único país; percebe-se que, em geral, custa aos coreanos falar de “duas” Coreias, porque entendem que são um único povo e uma mesma cultura. Sabem que o processo pode ser difícil e longo, mas também têm a certeza de que essa situação não poderá durar para sempre. A maior parte do povo coreano deseja a reunificação, a paz e, sobretudo, a superação do comunismo fechado e desumano do Norte, onde o povo vive sem liberdade e reduzido a massa de manobra do regime totalitário.

 

A IGREJA NA COREIA AINDA É BASTANTE JOVEM, UMA VEZ QUE A FÉ CRISTÃ CHEGOU ÀQUELE PAÍS APENAS EM MEADOS DO SÉCULO XIX. QUAIS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DA IGREJA CATÓLICA NA COREIA?

A Igreja na Coreia possui uma história bonita, mas também trágica. O início do Cristianismo na Península Coreana se deveu a alguns leigos estudiosos, que levaram da China a Bíblia e alguns livros sobre a fé cristã para seu País. O estudo e a leitura os levaram à fé cristã e a pedir o Batismo. Chegaram, então, os primeiros missionários, sobretudo franceses. Durante cem anos, os cristãos foram perseguidos e martirizados violentamente. Os mártires das perseguições são mais de 20 mil. Durante os primeiros cem anos, o império coreano e a cultura marcada pelo Confucionismo não aceitaram o fato de os cristãos se negarem a ver no imperador a encarnação da divindade. Portanto, a fé cristã era tida como subversiva e perigosa para a cultura e o sistema social e político. Os cristãos eram perseguidos, presos e torturados e, se permanecessem fieis à sua fé, eram decapitados. Finalmente, com a conversão cristã do último herdeiro do trono, chegou também a liberdade religiosa. Mas, logo viriam novas perseguições, sob o domínio colonial japonês, nos primeiros 50 anos do século XX. Com a implantação do Comunismo na Coreia do Norte, em 1957, as perseguições voltaram e o sangue dos mártires tornou a correr com abundância. Há centenas de causas de beatificação e de canonização em andamento. Outras centenas já foram celebradas, incluindo o primeiro sacerdote coreano – Padre André Kim, junto com seus numerosos companheiros mártires. Hoje, a Igreja Católica na Coreia conta com um pouco mais de 10% da população, algo em torno de 8 milhões de fiéis. Os evangélicos, que chegaram após a 2ª guerra mundial, somam o dobro de fiéis, divididos em numerosos grupos de “Igrejas livres”, de estilo neopentecostal. A Igreja Católica na Coreia do Sul possui 16 dioceses. Há várias dioceses no Norte, mas sem bispo, sem sacerdotes e sem povo, à espera de dias melhores e de liberdade religiosa. Até as igrejas foram destruídas, na sua maioria. A Igreja na Coreia do Sul é fervorosa, rica de vocações e muito ligada aos seus pastores e ao Papa. Nas missas dominicais, a frequência é de cerca de 30% dos fiéis. Numerosos são os missionários já enviados para outros países. Há muitas conversões e batismos de adultos. O Seminário Maior de Seul, que reúne seminaristas de três dioceses, conta com 240 seminaristas e 46 deles já são diáconos.

 

QUAIS SÃO AS MARCAS DEIXADAS POR TANTOS MÁRTIRES DA FÉ NA COREIA?

O testemunho dos mártires está por toda parte e o povo lhes tem grande veneração. Impressiona como, apesar das violentas perseguições e dos martírios, o povo perseverou na fé. Os sacerdotes e bispos tiveram que servir o povo às escondidas, geralmente à noite. Hoje, há numerosos santuários que lembram o lugar do nascimento ou do martírio deles e o povo os frequenta e venera, vindo também de outras partes da Ásia. 

 

DESDE OS PRIMEIROS TEMPOS DO CRISTIANISMO, OS CRISTÃOS ENFRENTAM O MARTÍRIO. TERTULIANO, CÉLEBRE TEÓLOGO DO SÉCULO IV, JÁ DIZIA QUE “O SANGUE DOS MÁRTIRES É SEMENTE DE NOVOS CRISTÃOS”. ISSO SE CONFIRMA MAIS UMA VEZ NA COREIA?

Sim, isso continua se confirmando também naquele País. A esperança é que também a Igreja–mártir da Coreia do Norte possa ressurgir e florescer. Essa esperança está presente nas comunidades do Sul. Em outros países da Ásia, isso também acontece. No Vietnã, sob o regime Comunista fechado, a Igreja foi violentamente perseguida, com numerosos mártires. Hoje, há um grande florescimento da fé, com muitas vocações, apesar de a liberdade religiosa ainda ser restrita.
 


 

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‘O vicentino é uma pessoa simples, que deseja transformar o mundo pela caridade’

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07 de novembro de 2017

Presente em mais de 150 países, entre os quais o Brasil, a Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP) comemora em 2017 os 400 anos do carisma vicentino, inspirado no exemplo de solidariedade aos mais pobres de São Vicente de Paulo (1581-1660).  

Em entrevista exclusiva ao O SÃO PAULO , Renato Lima, primeiro brasileiro a ocupar o cargo de Presidente Mundial da SSVP, fala sobre as bases de ação dos vicentinos e dos desafios da iniciativa em âmbito internacional. “O vicentino é uma pessoa simples, que deseja transformar o mundo pela caridade, seguindo ao apelo de Nosso Senhor Jesus Cristo. É uma pessoa de oração, que busca a conciliação e a harmonia”. 

Leia a seguir a íntegra da entrevista.

 

O SÃO PAULO – A SOCIEDADE SÃO VICENTE DE PAULO (SSVP), FUNDADA HÁ QUASE 200 ANOS POR ANTÔNIO FREDERICO OZANAM, CONTA HOJE COM APROXIMADAMENTE 800 MIL VOLUNTÁRIOS (VICENTINOS). O SENHOR PODERIA NOS CONTAR UM POUCO DA HISTÓRIA DA SSVP, DE SUA ESTRUTURA E POR QUE O TRABALHO DESENVOLVIDO AINDA É TÃO IMPORTANTE?

Renato Lima - A SSVP foi fundada em 1833 por sete amigos franceses, com a finalidade de visitar pessoas carentes nas periferias de Paris, na França, ajudando-as no que fosse possível, não só materialmente, mas, sobretudo, no aspecto espiritual e moral. Desde então, o movimento cresceu e hoje alcança 152 países. O Conselho Geral Internacional (CGI), do qual sou Presidente, fica em Paris. Em cada nação, existe o Conselho Superior (no Brasil, chama-se “Conselho Nacional do Brasil”), que é responsável pela organização da entidade. Em cada paróquia, temos as Conferências Vicentinas, que são os grupos de caridade que atuam nas visitas domiciliares. Penso que o trabalho vicentino é muito importante para a sociedade civil, em complemento às ações governamentais. Ser vicentino é um presente de Deus!

 

ENTRANDO UM POUCO NA SUA HISTÓRIA, O QUE O IMPULSIONOU A SER UM VICENTINO E COMO FOI A SUA TRAJETÓRIA ATÉ TORNAR-SE PRESIDENTE MUNDIAL DA SSVP?

Eu ingressei nos vicentinos em 1986, na cidade de Campinas (SP), onde eu estudava o ensino médio. Lá na escola militar, eu conheci a SSVP. Sempre quis ajudar as pessoas e encontrei na SSVP o local ideal para a prática da caridade com organização e seriedade. Ao longo desses 31 anos de caminhada vicentina, já fui Presidente de Conferência, Presidente de Conselho, já atuei nos setores de juventude, formação e comunicação. Portanto, Deus vinha me preparando para voos mais altos. E Ele assim o quis, e em 2016 fui eleito, pela maioria dos países, para ocupar a função de 16º Presidente Geral Internacional. Estamos na função há um ano, e com o apoio de uma diretoria fantástica, temos avançado muito, sem jamais perder de vista as conquistas alcançadas por meus antecessores. Porém, ser Presidente mundial jamais pode me ensoberbecer; afinal, o que prevalece são os propósitos do Senhor. Somos meros instrumentos da graça D’Ele.

 

COMO É A ATUAÇÃO TÍPICA DE UM VICENTINO? E DO PRESIDENTE MUNDIAL? O SENHOR TAMBÉM PRECISA VISITAR AS A FAMÍLIAS ASSISTIDAS PELA SUA CONFERÊNCIA?

O vicentino é uma pessoa simples, que deseja transformar o mundo pela caridade, seguindo ao apelo de Nosso Senhor Jesus Cristo. É uma pessoa de oração, que busca a conciliação e a harmonia. O Presidente mundial não é diferente de qualquer vicentino. Eu mesmo continuo ativo na minha Conferência (Nossa Senhora de Fátima), onde temos reuniões e visitas semanais. Se eu não fosse ativo na Conferência, seria um presidente artificial. Portanto, qualquer vicentino, não importando o cargo que ocupa na estrutura da Sociedade São Vicente de Paulo, é sempre a mesma pessoa. Faço sim visitas às famílias carentes de nosso grupo, e essa é a atividade que mais me dá alegria: poder ajudar a quem precisa. Se cada pessoa, no mundo, fizesse uma boa ação por dia, mudaríamos o planeta. Eu sou uma pessoa normal: sou casado, tenho filhos, levo as crianças ao colégio, faço compras no mercado, passeio com a família, viajo. Não sou diferente de ninguém.

 

O BRASIL TALVEZ SEJA O PAÍS COM O MAIOR NÚMERO DE VICENTINOS - SÃO APROXIMADAMENTE 153 MIL. O SENHOR CRÊ QUE HAJA UMA CONFLUÊNCIA NATURAL DA MISSÃO VICENTINA COM A SOLIDARIEDADE DOS BRASILEIROS?

O movimento vicentino, que chegou ao Brasil em 1872, cresceu muito e superou até mesmo o berço da entidade, a França. Hoje, o Brasil é o maior país vicentino do mundo, seguido pela Índia e pelos Estados Unidos. O povo brasileiro é muito solidário, e obviamente isso ajuda nos apelos e nas campanhas vicentinas. Mas, eu considero que outros fatores também fizeram com que a SSVP tivesse crescido tanto no nosso País: apoio da Igreja, forte religiosidade do povo, miséria crescente e reconhecimento dos poderes públicos. Todos esses elementos, juntos, na minha ótica, são os responsáveis pelo crescimento dos vicentinos em solo brasileiro. Aproveito para convidar os católicos que não fazem parte de nenhuma pastoral em suas paróquias: procurem os vicentinos e venham servir a Cristo pela prática da caridade!

 

EM 2017, CELEBRAM-SE OS 400 ANOS DO CARISMA VICENTINO. O SENHOR PODE COMENTAR COMO AS QUATRO AÇÕES CONCRETAS PROPOSTAS PELO PADRE TOMAZ MAVRIC (LEIA MAIS DETALHES EM HTTP://WWW.SSVPBRASIL. COM.BR/?P=1262) PARA A COMEMORAÇÃO DESSA DATA CONCATENAMSE COM O ESPÍRITO VICENTINO?

A SSVP está apoiando todas as ações da Família Vicentina, não só nas celebrações dos 400 anos, mas em tudo. Este ano, haverá um simpósio em Roma com a presença do Papa Francisco, além de outras excelentes iniciativas. Um dos dez itens do planejamento estratégico de nossa gestão é justamente esse: colaboração permanente e profunda com a Família Vicentina. Temos muitos projetos comuns. O nosso desafio é colocar as ideias em prática e atuar realmente de maneira integral na globalização da caridade. O espírito fraterno da solidariedade, que nasceu com São Vicente de Paulo, segue nos nossos corações e no nosso sangue. 

 

DESDE 2012, A SSVP PARTICIPA DO CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL DAS NAÇÕES UNIDAS (ECOSOC). COMO TEM SIDO A PARTICIPAÇÃO E A CONTRIBUIÇÃO DA SSVP NAS DISCUSSÕES NESSE FÓRUM?

A SSVP participa não só do Ecosoc como de outros foros internacionais no âmbito das Nações Unidas, do Parlamento Europeu e da Santa Sé. E queremos ampliar ainda mais as parcerias, acordos e convênios internacionais. Por exemplo, estamos nos aproximando da Ordem de Malta, que possui um trabalho solidário fenomenal na ajuda a crianças, idosos, refugiados e mulheres em situação de risco social. Este mandato está fazendo de tudo para envolver mais a SSVP nesse aspecto institucional. Criamos, inclusive, uma vice-presidência específica para ficar responsável por esse setor. Sugiro que os interessados no trabalho vicentino possam conhecer melhor o Conselho Geral acessando o nosso site

 

As opiniões expressas na seção “com a Palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal O SÃO PAULO.

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‘A opinião pública tem o direito de conhecer a verdade, sem a manipulação ideológica’

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25 de outubro de 2017

Os dias seguintes à coletiva de imprensa de 18 de outubro na Cúria Metropolitana (leia detalhes na página 14) foram de intensas críticas ao apoio da Arquidiocese de São Paulo à Plataforma Sinergia, que detém a tecnologia para a produção da Farinata, produto alimentício que será adotado pela Prefeitura de São Paulo como parte do projeto “Alimento para Todos”, estruturado a partir da lei 16.704/2017, que cria a Política Municipal de Erradicação da Fome e da Promoção Social dos Alimentos.

Em entrevista exclusiva ao O SÃO PAULO , o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo Metropolitano, reitera o apoio à proposta da Plataforma Sinergia como uma alternativa para a solução do problema da fome, do descarte de alimentos e do consequente dano ambiental pelo excessivo desperdício. Ele também lamenta que a opinião pública não tenha tido acesso às informações corretas da proposta e que as reflexões na sociedade ainda não estejam sobre o ponto central do programa. “Na discussão em questão, o que deveria estar em primeiro lugar é a pessoa do pobre, a luta contra o vergonhoso desperdício de alimentos, que gera muitos danos ambientais, e o bem da ‘casa comum’. Isso deveria estar acima de interesses partidários e constituir a plataforma comum para o engajamento de todos”, afirmou. 

Leia a seguir a íntegra da entrevista.

 

O SÃO PAULO - MESMO APÓS A COLETIVA DE IMPRENSA REALIZADA NO DIA 18 PELA ARQUIDIOCESE, A PLATAFORMA SINERGIA E A PREFEITURA DE SÃO PAULO, PERMANECEM QUESTIONAMENTOS SOBRE A QUALIDADE E A VIABILIDADE DO USO DA FARINATA PARA AUXILIAR NO COMBATE À FOME NA CIDADE. A QUE O SENHOR ATRIBUI A INSISTÊNCIA DE ALGUNS SETORES DA SOCIEDADE EM DESQUALIFICAR ESSA INICIATIVA DA PLATAFORMA SINERGIA?

Cardeal Odilo Pedro Scherer - A opinião pública tem o direito de ter informações corretas sobre as questões que estão em jogo nessa polêmica: 1)  Sobre o programa da Prefeitura – “Alimento para Todos”, é a Prefeitura que deve dar as explicações adequadas; 2) A lei municipal, assinada pelo Prefeito João Doria, é resultante de um projeto de lei na Câmara Municipal, de autoria do vereador Gilberto Natalini, que foi aprovado com grande consenso. Essa lei trata do direito ao alimento e das medidas para viabilizar o que ela prevê. A própria lei é de domínio público e está na base do programa “Alimento para Todos”; 3) A Farinata, produto alimentício semelhante à farinha, é obtida da transformação de vários alimentos ainda bons, transformados através de um processo próprio para lhes proporcionar ainda uma ulterior durabilidade. Da Farinata podem ser produzidos vários produtos prontos para o consumo, como pão, macarrão, bolo, pizza etc. Não se trata de “rejeitos” de alimentos, nem de alimentação de qualidade questionável. Quem deve dar as informações sobre a Farinata é a detentora de sua patente, a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) chamada Plataforma Sinergia. A insistência em desqualificar a Farinata, ao meu ver, tem diversos motivos, entre os quais a forma inadequada como foi apresentada ao público, a desinformação, o envolvimento ideológico e partidário e o interesse eleitoral de diversos setores. Infelizmente, a Farinata foi identificada com um derivado dela, logo “carimbado” como “ração” e tido como “indigno” dos pobres e da pessoa humana. Grande equívoco, se não foi maldade! O repasse irrefletido desse equívoco pelas mídias não deu mais espaço para uma compreensão serena e objetiva da própria Farinata e das possibilidades alimentares que ela pode oferecer. Volto ao início da resposta: a opinião pública tem o direito de conhecer a verdade das coisas, sem a manipulação ideológica de quem quer que seja.

 

O SENHOR JÁ DISSE EM OUTRAS ENTREVISTAS QUE A INICIATIVA DA PLATAFORMA SINERGIA NÃO É UM PROJETO DO GOVERNO JOÃO DORIA. PODE NOS RECORDAR QUANDO TOMOU CIÊNCIA DA PROPOSTA DA PLATAFORMA E COMO A TEM APOIADO DESDE ENTÃO?

De fato, desde 2012, acompanho com interesse a elaboração da proposta da Plataforma Sinergia, porque creio que ela vai na linha da solução de três questões que apelam à consciência e preocupam muito a Igreja: 1) O escândalo da fome no mundo e no Brasil também; 2) O também escândalo do enorme desperdício de alimentos bons para o consumo. O Brasil é um campeão no desperdício de alimentos; 3) O pesado dano ambiental causado pelo desperdício e mau aproveitamento dos alimentos.

 

ALGUMAS PESSOAS, INCLUINDO ALGUNS LÍDERES RELIGIOSOS, AFIRMAM QUE A ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO NÃO DEVERIA APOIAR UMA INICIATIVA QUE DARÁ “MIGALHAS AOS POBRES”. O QUE O SENHOR TEM DIZER A RESPEITO?

Penso que devemos ter diante de nós a meta ideal a ser buscada e lutar por ela. Neste caso, a meta é que os pobres tenham condições de vida digna, respeito à sua humana dignidade e seus direitos, alimento com qualidade, moradia, roupa, casa, escola, trabalho, segurança, além de outros bens necessários à vida digna. Para alcançar essas metas, todos devem se empenhar e, mais ainda, os governantes. No entanto, não devemos deixar de fazer aquilo que hoje nos é possível, mesmo que ainda não satisfaça integralmente as necessidades e os direitos dos pobres. Além do mais, os pobres precisam ser ajudados aqui e agora. O Papa Francisco nos lembra: pobre tem nome, rosto, idade, momento e lugar onde vive. Pobre não é simplesmente uma categoria ideal ou ideológica. Pobre é pessoa concreta. Se não temos ainda a solução ideal, não devemos deixar de fazer o que está ao nosso alcance.

 

QUE RESPOSTA O SENHOR DARIA A OUTRAS CRÍTICAS QUE PODEM SER RESUMIDAS NO SEGUINTE PENSAMENTO: “AO APOIAR UMA INICIATIVA COMO ESSA, A IGREJA ESTÁ ENXERGANDO O POBRE COMO UM ‘COITADINHO’ E DEIXANDO DE COLABORAR PARA QUE ELE, EFETIVAMENTE, MUDE SUA CONDIÇÃO DE VIDA”?

A resposta já está na questão anterior, mas acrescento que o pobre, para a Igreja, não é um “coitadinho”. Esse é um clichê aplicado à Igreja de maneira preconceituosa, mas é equivocado. Para a Igreja, o pobre é uma pessoa concreta, com dignidade e direitos a serem respeitados e valorizados em cada pessoa pobre. Talvez se pretenda que a Igreja deva se alinhar a um partido específico ou não deva trabalhar com determinado governante, porque pertence a certo partido... Mas, a Igreja não é um partido e tem suas motivações próprias para agir e não deve ser instrumentalizada para fins político- partidários. Na discussão em questão, o que deveria estar em primeiro lugar é a pessoa do pobre, a luta contra o vergonhoso desperdício de alimentos, que gera muitos danos ambientais, e o bem da “casa comum”. Isso deveria estar acima de interesses partidários e constituir a plataforma comum para o engajamento de todos. 
 

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‘Sofrimento na Síria é geral, mas os cristãos são o elo mais fraco’

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24 de outubro de 2017

O cardeal italiano Dom Mario Zenari evita entrevistas: “Por causa do trabalho que eu faço”, diz. Não por acaso. Ele é Núncio Apostólico na Síria, que está em plena guerra civil há sete anos, num conflito definido como a maior catástrofe humanitária depois da Segunda Guerra Mundial. É um dos poucos embaixadores que sobraram num país de violência com cifras, de fato, astronômicas. A guerra na Síria deixou ao menos 400 mil mortos, 5 milhões de refugiados, 6,3 milhões de desalojados e milhares de feridos. 

O SÃO PAULO procurou Dom Zenari em julho e conseguiu uma entrevista exclusiva apenas em 22 de setembro. A conversa, na Casa Santa Marta, residência  do Papa, no Vaticano, durou uma hora. Ele fez uma análise sobre a complexa situação da Síria, explicou como vivem os cristãos e o que a Igreja tem feito. “Se falamos de sofrimento, todos estão no mesmo barco. O sofrimento é transversal”, afirma. “Mas, os cristãos são o elo mais fraco.” 

Dom Zenari chegou à Síria há mais de oito anos para ser o representante do Papa, mas já está em missões diplomáticas da Santa Sé há 37 anos, sendo 18 como Núncio. Além da Síria, já atuou na Costa do Marfim e no Sri Lanka. Há exatamente um ano, o Papa Francisco o surpreendeu com a nomeação para Cardeal. “Um Cardeal deve estar pronto para dar a vida pela fé. Logo pensei que essa púrpura vai honrar o sangue de tantas crianças inocentes que morreram na Síria”, diz.
 

O SÃO PAULO – O SENHOR ESTAVA NA ALEMANHA NA QUEDA DO MURO, NO SRI LANKA E NA COSTA DO MARFIM DURANTE GUERRAS CIVIS. COMO ESSAS EXPERIÊNCIAS O PREPARARAM PARA A SÍRIA?

Dom Mario Zenari – Eu sempre brinco que sou um Núncio veterano de guerra, porque estou há 18 anos em países em guerra civil. Mas, nos outros lugares, o conflito foi limitado. Já na Síria, desde o início, tive a percepção de que o fogo se estenderia aos países vizinhos. E também se acendeu muito longe, com os ataques terroristas na França, na Alemanha, na Inglaterra... Nos primeiros dois anos, consegui visitar a Síria. É um país belíssimo, um paraíso para arqueólogos, com civilizações que remetem a 5 mil anos antes de Cristo.

 

ALI ESTÁ TAMBÉM A HISTÓRIA DA IGREJA, NÃO?

Por que será que 1,6 bilhão de pessoas se chamam “cristãos”? Poderíamos ser chamados “jesuanos”, “nazaretanos”, por causa de “Jesus”, mas alguns anos depois de Jesus ter ascendido ao céu, segundo os Atos dos Apóstolos (11,26), pela primeira vez os discípulos do Senhor foram chamados “cristãos”, em Antioquia da Síria. Lá, nos deram esse nome. Antioquia, sob o protetorado francês, passou à Turquia, mas era na Síria.

 

E SÃO PAULO ESTEVE NA SÍRIA, CERTO?

Todos lembramos do “Caminho de Damasco”, onde este jovem Saulo, um fundamentalista, teve a visão resplandecente do Senhor. Ele se tornou o apóstolo dos povos nos portões de Damasco. E quando o Senhor diz a Ananias, vá à rua chamada “Direta”; em Damasco ainda é preservada essa estrada reta. São Paulo andou por lá. Até a chegada do Islamismo, no ano 636, a Síria era toda cristã. Deu seis papas à Igreja e quatro imperadores. E Jesus nasceu em Belém, na noite de Natal, quando o governador da Síria era Quirino. Politicamente, Jesus nasceu na província romana da Síria. Não podemos esquecer disso. 

 

HOJE, PORÉM, PREVALECE O ISLÃ…

Antes do conflito atual [há 7 anos], a Síria tinha 23 milhões de pessoas. Destas, 70% eram muçulmanos sunitas, 12% alauitas, que podem considerados xiitas, mas são alauitas. Depois, cristãos eram 6%. No pós-Segunda Guerra, os cristãos eram 35%, e diminuíram com a queda da natalidade. Os muçulmanos têm famílias numerosas. Vi casos de 20 a 26 filhos. Já os cristãos têm dois ou três. Infelizmente, com o conflito, os grupos minoritários são o elo mais fraco. E, entre os cristãos, porque não são armados, a metade decidiu partir. Hoje, somos 2% a 3% da população.

 

A SITUAÇÃO PIOROU JUSTAMENTE NOS ANOS EM QUE O SENHOR JÁ ESTAVA NA SÍRIA? 

É um desastre. Cheguei na Síria dois anos antes do conflito. Era um país que se desenvolvia e, com os ventos da Primavera Árabe, mergulhou nessa onda de violência. O conflito foi se complicando. De manifestações pacíficas por mais liberdade, mais respeito aos direitos humanos, com a repressão por parte do regime [do presidente Bashar al-Assad], chegou-se à luta armada. Com a entrada de forças externas, grupos jihadistas [fundamentalistas islâmicos], chegou-se a uma guerra por procuração [proxy war], e depois internacional. De um lado, a Arábia Saudita e os países do Golfo; de outro, o Irã. E, ainda, a intervenção da Rússia, por motivos estratégicos, dos Estados Unidos e da Turquia.

 

E O ESTADO ISLÂMICO…

Quando um corpo é doente, outros problemas aparecem. É um fenômeno extra e todos estão de acordo em expulsá-lo, com diferentes estratégias. Porém, são sete ou oito bandeiras que lutam na Síria e, uma vez eliminado o Estado Islâmico, serão uma contra a outra. Até agora, não se enxerga acordo quanto ao futuro da Síria.

 

COMO VIVEM OS CRISTÃOS?

Se falamos de sofrimento, todos estão no mesmo barco. Sunitas, xiitas, alauitas, drusos… o sofrimento é transversal. Não se pode dizer que um grupo sofre mais. Numericamente sim, porque a maioria é sunita. Mas todos tiveram mortos, feridos, refugiados, desalojados, vilas destruídas, fábricas perdidas. Todos. Porém, se olhamos para o risco, é maior para os minoritários e, portanto, para os cristãos.

 

EXISTE O RISCO DE QUE OS CRISTÃOS DESAPAREÇAM DA REGIÃO?

Ainda é algo incerto, porque este regime começou mais de 50 anos atrás, sustentado por uma minoria de alauitas, 12%, e foi esperto: deu privilégios às minorias para ter apoio político. Os cristãos não tinham problemas de liberdade religiosa. Os tribunais eclesiásticos foram reconhecidos, construíam igrejas, faziam procissões. E as relações com as comunidades muçulmanas, mais de 70% da população, eram boas. O dia de Natal ou a Páscoa era sem trabalho para todos. 

Uns cumprimentavam os outros nas festas. O Islã na Síria não era fanático, era moderado. Agora as coisas mudam.

 

HOJE EXISTE DIÁLOGO ENTRE AS RELIGIÕES?

No nível dos bispos, imãs, sacerdotes, há um bom diálogo. Há também o diálogo ecumênico: diante de 70% a 80% de muçulmanos, os cristãos se unem, sejam ortodoxos ou católicos. Fala-se só de cristãos e muçulmanos.

 

OS CLÉRIGOS CRISTÃOS DESAPARECIDOS NOS ÚLTIMOS ANOS FORAM CAPTURADOS PELO ESTADO ISLÂMICO?

Não se sabe. Temos cinco eclesiásticos desaparecidos há mais de quatro anos: dois bispos ortodoxos e três padres. Não se sabe nada do destino deles. Fala-se de 30 a 40 mil desaparecidos nestes anos, sequestrados, utilizados para trocas, e no meio-tempo muitos morreram. É um enorme sofrimento.

 

MILHÕES DE JOVENS NÃO PODEM ESTUDAR NA SÍRIA. ISSO PODE TER IMPACTO POR MUITOS ANOS?

Isso varia, mas uma escola em cada três está sem uso. Cerca de 2 milhões de crianças em idade escolar não vão à escola. Quando chegam aos 18 anos, 20 anos, muitos rapazes emigram para evitar o serviço militar, porque os jovens que entraram há sete anos, se ainda vivos, estão no serviço militar. E há uma grande incerteza sobre o futuro. Eu chamo de uma “bomba”, entre aspas, a migração dos jovens. Temos uma sociedade e uma Igreja sem jovens.

 

E MUITOS ENTRE OS MIGRANTES SÃO CRISTÃOS...

A partida dos cristãos é um empobrecimento, porque, em geral, eles têm uma mentalidade universalista. Pensam no mundo, no Papa, nos outros católicos. Digo sempre: cada cristão que parte é, para a Síria, uma janela para o mundo que se fecha. A Síria arrisca se tornar uma sociedade monocultural, monorreligiosa. Os cristãos tiveram grande parte de influência histórica na Síria.

 

MAS, A IGREJA DEFENDE A LIBERDADE DE MIGRAR?

A liberdade de movimento é sacrossanta. Porém, deve-se ajudá-los também a permanecer, não só economicamente, mas espiritualmente. Se você não está sob as bombas e tem um bom trabalho, deve pensar em testemunhar a fé na Síria. Dar sua contribuição ao País. Mas, também o País deve fazer com que os cristãos se sintam bem. Nos países muçulmanos, os cristãos se sentem cidadãos de segunda classe. São países teocráticos, “repúblicas islâmicas”. Para os muçulmanos, falta muito para separar a religião do Estado e chegar ao conceito de cidadania. A Síria estava à frente nisso, tinha uma tendência laica, uma “república árabe”.

 

COMO ESTÃO AS RELAÇÕES ENTRE A SANTA SÉ E O GOVERNO ASSAD?

A Santa Sé mantém sempre o seu representante. Não o retira. E eu, junto a outros oito ou dez embaixadores, estou ali, para as igrejas e para o serviço ao País, tentando promover a paz. Grande parte das atividades da nunciatura é organizar ajuda humanitária com a Cáritas Síria e outras agências. E a Síria tem o embaixador junto à Santa Sé, que está em Genebra, na Suiça. É um canal de comunicação.

 

O SENHOR DIALOGA COM OUTROS GRUPOS, DE REBELDES, POR EXEMPLO?

Não. Aqui não me é sequer permitido, porque aí eu iria contra o governo...

 

DOM PAUL GALLAGHER, SECRETÁRIO PARA RELAÇÕES EXTERIORES DO VATICANO, DISSE ÀS NAÇÕES UNIDAS QUE É PRECISO UMA SOLUÇÃO “INTRA-SÍRIA”, ISTO É, INTERNA. É A POSIÇÃO OFICIAL DA IGREJA?

Sim. Isso é dito também por outras cadeiras: o diálogo intra-sírio. Porém, como eu dizia, há seis ou sete bandeiras externas. Cada uma tem militares e armas, mais ou menos independentes. Como é possível o diálogo entre sírios quando há outros?

 

ENTÃO, É FUNDAMENTAL, TAMBÉM, UMA SOLUÇÃO INTERNACIONAL?

O apoio da comunidade internacional é fundamental. Mas, o apoio. No entanto, estas bandeiras dão apoio ou estão implicadas no conflito? Não sei o quanto é possível um diálogo livre entre sírios. Mas queria destacar que o problema da Síria, do Iraque, do Iêmen, é, fundamentalmente, causado por países da região.

 

SÃO ELES MESMOS A RAIZ DO PROBLEMA?

O contraste que existe na Síria é entre os países do Golfo mais Arábia Saudita e o Irã. É o mesmo no Iraque, onde quem causa problemas são sunitas e xiitas. E no Iêmen. Essa é a base do problema. Entra mais a questão política do que religiosa, mas é o fato. Há antagonismo entre duas potências. Cada uma quer ter domínio sobre a região. Às vezes, digo que bastaria colocá-los na mesma mesa e, se conseguirem apertar as mãos, grande parte da questão se resolverá.

 

QUANDO O SENHOR ENCONTRA O PAPA FRANCISCO, O QUE ELE DIZ?

Ele está informado. Sabe do sofrimento das pessoas e, de fato, devo falar da minha surpresa quando ele me nomeou Cardeal. Um Cardeal deve estar pronto para dar a vida pela fé. Logo pensei que essa púrpura vai honrar o sangue de tantas crianças inocentes que morreram, tantos civis. Na história moderna das nunciaturas, sou o único núncio Cardeal. Em geral, são Arcebispos. Foi um sinal do Papa para a martirizada Síria. Recordamos, também, a oração de 7 de setembro de 2013, na Praça de São Pedro, que teve grande eco, num momento em que se pensava em intervenção militar. Depois, todos os discursos do Papa. Cada vez que ele encontra chefes de Estado e ministros, o dossiê Síria está presente. E, em 2016, a Igreja Católica financiou 200 milhões de dólares para projetos de desenvolvimento, educação, saúde, alimentação, na Síria e na região.

 

A SÍRIA TEM TANTOS MÁRTIRES. O QUE O SENHOR PENSA SOBRE O MARTÍRIO?

A palavra mártir é usada em sentido muito amplo. Falo só da Síria, e não do Iraque ou do Egito: não se pode falar de uma real perseguição contra os cristãos. Tiveram muitas ameaças, igrejas destruídas e saqueadas, insultos e algumas igrejas viraram tribunais da shari’a [lei islâmica]. Recordo três paróquias, dominadas pelo grupo Al-Nusra, onde deixam os cristãos sobreviver, com limitações, mas deixando-os rezar. Nas zonas do Estado Islâmico, não temos mais cristãos. Destaco que tantas mesquitas foram destruídas também, e tantos muçulmanos foram degolados pelo Estado Islâmico. Todos sofreram, mas os cristãos são o elo mais fraco. Têm mais riscos para o futuro. Quem sofre mais são as crianças e as mulheres, traumas físicos e psicológicos. Não vejo ainda uma saída, mas houve redução da violência em algumas zonas, um cessar-fogo para permitir a ajuda humanitária. É isso o que se pode obter agora.
 


 

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‘Um encontro que se faz palavra’

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14 de julho de 2017

O SÃO PAULO – Como é o dia a dia de um padre num país com minoria cristã?

Frei Claudio Monge – Viver em um país islâmico é diferente de viver no Ocidente. Eu vivo em meio à muita gente que crê e tem uma orientação fundamental da vida. Tenho consciência do risco do relativis- mo, porém, creio que como Igreja temos responsabilidade sobre isso, porque anos e anos falamos de uma verdade impessoal. Mas dou um exemplo que pode ilustrar bem esse dia a dia. Temos uma pequena igreja no coração de Istambul, que é uma grande megalópole como São Paulo. Aos domingos, celebramos a Eucaristia. Um dia, vi uma moça mulçumana e fiquei curioso, mas não pude entrar em contato com ela imediatamente. No domingo seguinte, ela também estava ali. Ficou alguns domingos sem participar e retornou após um mês, quando fui encontrá-la. Saudei-a e perguntei: “Por que você vem aqui?”. A mulher, com uma simplicidade desarmante, disse: “Eu vivo neste bairro, nossa mesquita é pequena e não há lugares para mulheres. Minha mãe aconselha que eu reze em casa, mas eu gosto de rezar a Deus num lugar em que se fale dele. Então, ve- nho aqui para rezar ao meu Deus”. Para mim, ficou a experiência de que aquela se- nhora compreendeu que ser diferente não significa ser oposto e eu compreendi que é um diálogo de sentido. O que existe é o diálogo entre crentes cristãos e crentes mulçumanos. O Islã vive a mesma com- plexidade do Cristianismo, não é mono- lítico e, por isso, para que seja possível, é preciso conhecer a si mesmo e ao outro, ir além do estereótipo. Nós vivemos de estereótipos, da imagem que temos do outro. O Islã é pleno de estereótipos, que se exprimem com imagens, mais do que palavras. Quando eu, no trabalho com os jovens, projeto imagens de mulheres mulçumanas, idosas ou fora dos padrões de beleza e pergunto sobre o sentimento de cada um deles, usam palavras como tradicionalismo, fanatismo, fechamento e uma não comunicação. Depois, apre- sento imagens parecidas, mas nas quais há mulheres que são modelos usando a burca e, às vezes, só com os olhos à mostra. Ao fazer a mesma pergunta, os jovens começam a usar palavras como exótica, fascinante ou intrigante. Desa- parece o fanatismo. As duas posições são estereótipos, não veem a verdade. Assim, insisto que é preciso conhecer e não só conhecer, mas reconhecer, isto é, per- mitir que o outro viva algo de essencial como eu também o vivo.

 

O que significa isto no diálogo inter-religioso?

Para mim, essencialmente, é a combinação de inteligência e experiência. A pessoa precisa conhecer a si mesma. Se alguém não sabe de onde vem, não dialogue, porque é perigoso. Hoje se diz que há uma crise de diálogo porque as identidades são fortes. Acredito que é exatamente o contrário: as identida- des são fracas e, por isso, o outro causa medo. Conhecer o outro requer experi- ência, não é um fato só cerebral, deve-se ir ao encontro. Semanticamente, diálogo é uma palavra grega composta de duas partes, onde “logos” significa palavra e “dia” significa estar entre, jogar-se. Para dialogar é necessário jogar-se no meio, comprometer-se. Não se pode estar acima, mas junto. É preciso estar no meio, sem apagar a diversidade. Por isso, digo que o diálogo é ascese, não autonegação, mas disciplina, busca do essencial. Para andar ao encontro do outro é necessário conservar só o tesouro essencial. Finalmente, o diálogo não é sempre conversa, ou simplesmente informação recíproca, mas uma troca de experiências que per- mite às duas partes crescerem no caminho pessoal.

 

Quais as principais dificuldades para que o diálogo aconteça?

Hoje é difícil escutar. Ouvimos dizer que o homem não escuta por ser egoísta. É verdade, mas não suficiente. Não escuta porque pensa que não há uma palavra que dê sentido à vida. Frequentemente, pensamos que o outro esteja tão perdi- do quanto nós e, assim, é inútil falar ou escutar. Mas, escutar o que? Qualquer coisa? Vivemos também uma crise da palavra, porque frequentemente nos confrontamos com palavras vazias. A mídia nos bombardeia com informações e isso reduziu a comunicação, o intercambio pessoal. A palavra se torna um inimigo. Usamos palavras ambíguas, com muitos significados, desgastadas por terem significados diversos. Por isso, as palavras devem ter o sentido resinificado. Diálogo significa um encontro que se faz palavra. Consiste em dar um peso real às palavras que usamos, e, por isso, é preciso conhecê-las para poder falar e escutar.

 

Quais seriam as “regras de ouro” para o diálogo?

Vou sugerir algumas, a partir da minha experiência. Primeira: ao dialogar não busque no outro o que é importante pra você, porque não vai descobrir nunca o que é importante para o outro. Esse é um problema do diálogo ecumênico, por exemplo, quando busca no outro o que é bom para si e ignora todo o resto. Mas, o outro não sou eu, é outro. Assim, em um verdadeiro diálogo, o outro tem o direito de oferecer o que é bom para ele, e eu devo aceitar que os seus tempos não são os meus. A segunda regra é reconhecer a limitação das palavras usadas, pois as experiências religiosas são diversas. Quando um cristão fala de unidade, não diz a mesma coisa que um mulçumano ao falar de unidade. Por isso, a experiência permite nos aproximar uns dos outros e não podemos reduzir a experiência do outro ao que não compreendemos. A terceira é aprender a julgar a tradição do outro a partir dos tesouros, das veias fundamentais, permanentes, do que é mais precioso e não dos “subprodutos”. Dividir os tesouros que te habitam não significa ignorar os problemas, mas começando com os te- souros, podemos um dia colocar em comum até o que nos faz sofrer. O dialogo é uma experiência ascética. Devemos encontrar um princípio organizado da verdade que está em nós. Na nossa fé, as coisas não são importantes do mesmo modo. Há coisas marginais, secundárias e devemos oferecer o coração da vida e não as periféricas. Desse modo, outros serão convidados a fazer o mesmo. Por fim, podemos dizer que duas coisas po- dem ser radicalmente diferentes, mas importante encontrar os crentes concretos e não a ideia que faço deles. Assim, o verdadeiro diálogo é hospitalidade.

 

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