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Política

Presos mortos no Amazonas: não foi por falta de aviso

Por Daniel Gomes
26 de junho de 2019

Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM), é palco de mortes de presos; unidade é mantida em cogestão com a iniciativa privada

As precárias condições nas quatro unidades prisionais do Amazonas onde foram assassinados ao menos 55 detentos nos dias 26 e 27 de maio já haviam sido alertadas ao governo estadual pelo menos desde 2015. 
É o que indica uma nota divulgada no dia 30 pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão criado por lei federal em 2013, composto por especialistas independentes que têm acesso às instalações de privação de liberdade para constatar eventuais violações de direitos humanos. 
No relatório feito em 2015, já se alertava para a superlotação, necessidade de um plano de desencarceramento, falhas na terceirização dos serviços e precariedade dos órgãos periciais para fiscalizar as condições das prisões. Indicativos similares foram feitos em 2017, após a morte de 56 presos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), uma das unidades onde aconteceram as mortes no mês passado.
Em visita ao Compaj no ano passado, o MNPCT e o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura constataram que “grande parte das recomendações do Mecanismo Nacional não havia sido cumprida e a situação das unidades prisionais havia voltado ao mesmo patamar de descaso, abandono e violência verificado no ano de 2015. Situação que criava um alerta de que mais uma vez poderia acontecer algo de grave no Estado”, informa a nota do MNPCT. 

Cogestão
As quatro unidades onde aconteceram as mortes nos dias 26 e 27 – Compaj, Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat), Centro de Detenção Provisória Masculino (CDPM 1) e Unidade Prisional do Puraquequara (UPP) – eram mantidas em sistema de cogestão, em que o governo do Amazonas pagava à empresa Umanizzare pelos serviços de limpeza, alimentação, assistência material, cursos profissionalizantes, suporte psicológico, social, ocupacional, atendimento médico, odontológico, farmacêutico e ambulatorial. 
Na visita realizada em 2018, “a mesma empresa gestora continuava atuando sem fiscalização adequada e sem nenhuma responsabilização pela gestão temerária do sistema”, constatou o MNPCT.
Três dias antes das primeiras mortes, o Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, ao acolher um pedido do Ministério Público Estadual, determinou que o governo não renovasse os contratos com a Umanizzare, pois se constatou que esta descumpria com suas obrigações contratuais e falhava na segurança interna das unidades prisionais. Em nota à imprensa, a Umanizzare informou que a segurança interna e externa das unidades é de responsabilidade da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária. 

Pós-tragédia
Em 28 de maio, o Governo do Amazonas informou que não fará a renovação do contrato, encerrado em 1º de junho, e que já iniciou o processo de licitação para a contratação de outra empresa. Também foram anunciadas a aquisição de equipamentos de comunicação e inteligência, as adequações estruturais nas unidades prisionais, a prorrogação, por 12 meses, da permanência da Força Nacional de Segurança no Estado, presença da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária e a transferência, para presídios federais, dos detentos mandantes ou executores das mortes.
    
Uma boa alternativa?
A concessão parcial ou total à iniciativa privada da gestão ou serviços das unidades prisionais surgiu nos Estados Unidos. A ideia básica é que com unidades prisionais em boas condições de manutenção, sem superlotação e com presos a realizar atividades cotidianas, se consiga melhor êxito no processo de ressocialização dos detentos. No começo dos anos 2000, o modelo de terceirização de serviços chegou ao Brasil. Em 2013, foi inaugurado o primeiro presídio totalmente gerido pela iniciativa privada, em Ribeirão das Neves (MG). Recentemente, também o Governo de São Paulo informou que oferecerá à iniciativa privada a gestão compartilhada de quatro centros de detenção provisória (CDPs), que serão inaugurados ainda este ano no interior paulista.

Alto custo e degradação
Entre as críticas feitas ao modelo de presídios privatizados está o custo elevado por preso: enquanto, em média, cada detento custa ao Estado R$ 2,4 mil mensais, no Compaj, por exemplo, para o Governo do Amazonas esse valor por preso é de R$ 4,7 mil.
“Mesmo com grandes volumes de verbas, as unidades privatizadas se encontram em condições absolutamente degradantes, e em regra são as famílias que fornecem itens básicos para garantir a sobrevivência das pessoas encarceradas”, posicionou-se a Pastoral Carcerária, em nota publicada em 29 de maio. 
Em entrevista ao O SÃO PAULO, a Irmã Petra Silvia Pfaller, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, afirmou que as mortes no Amazonas “são mais uma prova que privatizar presídios não é a solução, e que, dentro de uma dinâmica das privatizações, as vidas são tratadas como mercadoria”. Para ela, essas e outras mortes nas prisões “são fruto da superlotação, das torturas e de tantas violações de direitos que são muito comuns dentro do cárcere, e não só no Amazonas”.
Já para o Desembargador Yedo Simões, presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, tem havido um bom controle das unidades prisionais por parte dos órgãos de segurança amazonenses desde o início de 2019, e as recentes mortes, dentro das celas, inviabilizaram qualquer possibilidade de intervenção imediata. “A intenção dos internos não era fazer reivindicação, não era algum pedido de providência. A questão deles é uma disputa interna, é uma situação atípica”, afirmou em coletiva de imprensa em 29 de maio. 

Falta de fiscalização
Irmã Petra alertou para a dificuldade de se verificar as ações das empresas que atuam nas unidades prisionais. “As restrições para fiscalizar o contrato são muito grandes: o Poder Judiciário não entra nas unidades por questões de segurança, o Ministério Público não entra e a sociedade civil não tem o direito de entrar. Inclusive, há enormes restrições à Pastoral Carcerária para fazer visitas religiosas nesses locais”, comentou, enfatizando que a Pastoral propõe uma agenda nacional pelo desencarceramento, que pode ser lida em www.carceraria.org.br.

Mudança na legislação
Conforme dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgados em 2017, há 726.712 pessoas presas no Brasil. Trata-se da terceira maior população carcerária do mundo e que pode ser ainda maior, pois, segundo a ONG internacional Human Rights Watch, ao fim de 2018 havia 840 mil presos no País. 
Para reverter esse cenário, além dos diferentes planos de ação do Poder Executivo, já foi aprovado pelo Senado um Projeto de Lei (PLS 513/2013) para mudanças na Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984). No entanto, a tramitação está parada na Câmara dos Deputados. 
Entre as mudanças propostas pelo projeto de lei para reduzir a superlotação carcerária estão: informatização do acompanhamento da execução penal; progressão antecipada de regime em caso de superlotação da unidade; possibilidade de cumprimento de pena em estabelecimentos da sociedade civil, como as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs); e a realização de mutirões carcerários para analisar o processo dos presos sempre que a unidade prisional atingir o limite de sua lotação. 

(Com informações de Politize!, BBC, Agência Brasil, Agência Senado e G1)

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