A peste negra e o chamado à santidade pessoal

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03 de mai de 2020

Após a chamada Praga de Justiniano, que teve fim no século VIII, a Europa apenas veio a sofrer um epidemia de peste novamente no século XIV, na chamada Peste Negra, que durou até o século XVI e dizimou, no mínimo, 30% da população europeia.

A Peste originou-se no Oriente, provavelmente na Mongólia. Espalhou-se para o Oeste tanto pela migração de animais infectados bem como por meio das rotas de comércios estabelecidas nos séculos XII e XIII. No fim dessas rotas que vinham da Ásia, encontravam-se mercadores Italianos, que traziam produtos do Mar Negro e da parte oriental do Mar Mediterrâneo.

Normalmente, afirma-se que o primeiro documento da Peste Negra na Europa foi redigido pelo advogado Gabriel de’ Mussis, que, em 1346, num assentamento italiano na Crimeia, descreveu que “um incontável número de Tártaros e Sarracenos foram abatidos por uma misteriosa doença”. Os Tártaros morreram aos milhares e os corpos eram lançados por cima dos muros da cidade para infectar os italianos, seus inimigos. Em pouco tempo, estes também se infectaram.

Depois, a peste espalhou-se para Constantinopla, capital do Império Bizantino, que tinha uma população de aproximadamente 100 mil pessoas. Dali, espalhou-se para o Reino da Hungria, Sicília e Itália Continental.

O frei franciscano Michele da Piazza descreveu a chegada da Peste na Sicília. Em outubro de 1347, 12 navios genoveses embarcaram na ilha. Os genoveses a bordo, segundo o Frei, “carregavam uma doença em seus corpos que qualquer um que se atrevesse a conversar com qualquer um deles se infectaria e não poderia evitar a morte”.

Chegada à Itália Continental, a peste foi responsável pela diminuição de 30% a 40% da população na cidade de Pisa e Genova. Mais de 70% dos infectados pela peste morriam. Chegada à Toscana, a região mais próspera da Itália, a praga tornou-se mais mortífera. Em Florença, as estimativas chegam a afirmar que 75% da população foi dizimada pela doença.

Da Itália, a doença atingiu outros países europeus. A mortalidade nas cidades francesas ao sul foi, em média, de 40%. Avignon, a cidade que, momentaneamente, era a sede do Papa, foi atingida pela peste em 1348, e o Papa Clemente VI, aconselhado por seu médico, saiu da cidade para se proteger contra a doença.

Do sul da França, a peste se interiorizou e atingiu profundamente o maior reino cristão da época, com uma população entre 18 e 24 milhões de pessoas. No pico da doença, reportavam-se 800 mortes por dia apenas em Paris, que, à época, tinha uma população de aproximadamente 100 mil pessoas. Da França, a Peste espalhou-se aos países baixos e à Inglaterra.

Um frei carmelita do século XIV, Jean de Venette, explicou, em suas Crônicas, que “um tal número de pessoas morreu em 1348 e 1349, que nada como isso havia sido visto ou conhecido” e que “em muitos lugares, nem dois homens ficavam vivos entre vinte”.

Nas cidades espanholas de Barcelona e Valência, a peste matou entre 30% e 40% da população. O Rei Afonso XI de Castela foi o primeiro e único rei europeu a morrer pela peste. 

Desse pico no século XIV, grandes surtos da doença ocorreram até o século XIV, em 17 grandes ondas epidêmicas, que voltavam aproximadamente a cada 11 anos.

Exemplos de santidade

Em qualquer período da história em que reina a desordem, o caos e a morte, os extremos da alma humana se mostram. Há aqueles que abandonam seus entes queridos para se proteger; há os que criam bodes expiatórios para achar culpados; há outros, porém, que demonstram grande amor ao próximo e auto sacrifício. No tempo da Peste Negra, não foi diferente.

Maridos abandonavam suas esposas moribundas, e pais, por medo de contágio, faziam o mesmo com seus filhos. Ondas de antissemitismo buscavam culpar os judeus pela peste, e muitos atos violentos foram feitos contra eles, apesar da admoestação constante dos papas à época que condenaram abertamente qualquer violência contra os judeus. 

Entretanto, há exemplos de heroísmo e amor em épocas turbulentas. Religiosos que cuidavam dos doentes (os hospitais eram, à época, quase que exclusivamente religiosos); padres que não abandonavam o seu rebanho para lhes dar o conforto; pessoas que vendiam tudo o que tinham para doar aos pobres e doentes.

Neste texto, queremos ressaltar dois exemplos de pessoas que doaram sua vida ao cuidado dos doentes, por amor ao próximo e amor a Deus: São Bernardino de Siena e São Carlos Borromeu. 

São Bernardino de Siena (1380-1444)

Da mesma cidade de Santa Catarina, Doutora da Igreja, São Bernardino nasceu numa família nobre, mas ficou órfão de ambos os pais aos 6 anos de idade. Cuidado por tias piedosas, Bernardino recebeu uma educação aristocrática e demonstrou desde cedo um grande apreço pela virtude e pelo amor ao próximo.

Em 1400, quando o Santo contava apenas com 20 anos de idade, a peste visitou a cidade de Siena pela terceira vez. Este surto epidêmico foi maior do que os anteriores, favorecido pela passagem de peregrinos a Roma devido às comemorações do jubileu secular.

Siena possuía uma hospital antiquíssimo dedicado a Santa Maria dela Scala, cujo prédio está de pé até hoje e fica diante da famosa Catedral da cidade. No século XIV, o Scala era um centro de caridade conhecido, a que recorriam muitos doentes. Muitos santos e beatos lá exerceram sua caridade. São Bernardo Tolomei (1272-1348), por exemplo, faleceu no hospital por contrair a peste.

Na epidemia de 1400, cada dia, numerosos doentes faleciam no hospital, e os que deles cuidavam também contraíam a peste e morriam. O diretor do hospital, João Ghiandaroni, não sabendo como reagir, pois perdera boa parte da equipe que lá trabalhava, não achou outra saída do que recorrer à intercessão de Nossa Senhora para encontrar alguma solução.

Pouco depois, o jovem Bernardino se apresentou ao diretor propondo assumir o cuidado total do hospital junto com alguns amigos. O diretor, apesar de comovido com a proposta do jovem, hesitou em conceder-lhe o que pretendia. Como um jovem moço, com poucos amigos, poderia assumir um hospital inteiro? Além do mais, Bernardino, sendo de família nobre, não poderia arriscar-se e expor-se a tamanho perigo.

 Nenhuma dessas admoestações moveu o jovem, que respondeu, com firmeza: “Se Deus quiser que eu morra, aceitarei a morte alegremente”. Ghiandaroni, então, reconhecendo a seriedade do desejo de Bernardino, entrega-lhe as chaves e toda a direção da instituição.

Reunidos algumas dezenas de jovens, Bernardino os incentivava à caridade, lembrando constante da caridade de Cristo e da necessidade de imitá-lo.

Antes do grupo entrar no hospital, o jovem lhes fez uma exortação para que perseverassem no desejo de doar-se pelos doentes: “Quem de vós pode gabar-se de prolongar sua vida quando vemos os outros morrerem diariamente, quando nossos mais amados companheiros sucumbiram aos primeiros ataques do flagelo? Se morrermos, cumprindo os deveres de caridade, iremos ao Senhor; se, ao contrário, a morte nos poupar, regozijar-nos-emos a vida inteira de termos prestado a Deus tantos serviços na pessoa de seus pobres. Portanto, que vivamos ou que morramos, somente podemos lucrar neste ministério”.

Dia e noite, Bernardino se consagrou ao serviço dos doentes. Consolou-os, ajudou-os a morrer quando não havia mais esperança, sepulto-os pessoalmente. Realizou os serviços mais repugnantes e preocupou-se com a higiene do hospital, com a limpeza e a ordem. Sempre admitiu novos doentes, por mais lotada que estivesse a casa. Muitos de seus companheiros morreram, mas sempre foram substituídos por outros que desejavam voluntariar-se no hospital.

Quatro longos meses, com noites mal dormidas, convivendo constantemente com a morte, foi o tempo do trabalho incansável do jovem Bernardino. Debelada a peste, o jovem deixa o hospital e se entrega à vida religiosa, tornando-se um frei franciscano.

São Carlos Borromeu (1538-1584)

Carlos Borromeu foi um cardeal de grande influência no Concílio de Trento. Seu tio, o Papa Paulo IV, o encarregou como responsável de pôr fim aos trabalhos conciliares, que se estendiam por quase 18 anos.

Arcebispo de Milão, Borromeu implementou em sua diocese as reformas exigidas pelo Concílio, como a moralização do clero. Percebeu, entretanto, que a reforma na Igreja deveria partir antes da conversão pessoal do que de uma mera mudança nas instituições. Assim, a vida de Borromeu foi a grande responsável pelo sucesso de aplicação das reformas do Concílio em sua diocese. Sua vida contrariou tanto determinados clérigos de sua diocese, que Borromeu sofreu duas tentativas de homicídio, das quais escapou.

São Carlos Borromeu já era conhecido pela sua humildade e caridade com os pobres. Em uma grande carestia de comida, em 1571, ele foi o responsável por alimentar diariamente 3 mil pessoas. Entretanto, o maior testemunho de sua santidade ocorreu na epidemia de 1576, que vitimou 25 mil pessoas apenas em Milão.

No começo da epidemia, o governo civil e a nobreza fugiram da cidade, obrigando a população a enfrentar sozinha a epidemia. Borromeu garantiu, entretanto, à população que, como bispo, não fugiria, e pediu para que os padres fizessem o mesmo. “Temos apenas uma vida e devemos gastá-la em favor de Jesus e das almas – não como desejamos, mas no tempo e na forma que Deus desejar”, afirmou São Carlos.

A maioria do clero permaneceu em Milão e mais que uma centena morreu por causa da doença. O sacrifício e a morte heroica desses padres demonstram quão profundas foram as reformas implementadas por Borromeu, que se enraizaram em seu clero.

O Arcebispo em pessoa esteve na linha de frente para assistir os doentes durante a peste. Ele organizou hospitais e cuidou dos órfãos. Levou pessoalmente a Eucaristia para centenas de doentes e moribundos em quarentena em suas casas. Rezou missas em praças e ruas para que as pessoas pudessem participar dentro de suas casas. Vendeu móveis e adereços do palácio episcopal para angariar fundos para os pobres. A cara tapeçaria foi usada para costurar roupas para os desvalidos durante o inverno. Terminada a peste, quase nada restou no palácio episcopal.

Quando os cadáveres não podiam ser enterrados no tempo oportuno, devido a grande quantidade de mortos, o Arcebispo foi visto, certa vez, escalando uma pilha de corpos para dar o Viático a um homem que ainda estava consciente.

Em suma, São Carlos Borromeu viveu uma vida heroica em meio à epidemia e foi exemplo para seu clero de uma admoestação que fizera, certa vez, para todos os seus padres: “Não esqueçais do vosso sacerdócio a ponto de preferirdes uma morte mais tardia a uma morte santa”.

Pandemia: um chamado à santidade pessoal

Uma verdadeira reforma exige santificação pessoal. Os exemplos de São Bernardino e São Carlos Borromeu são luz para nós, que vivemos, também, um tempo de epidemia. Talvez a epidemia do novo coranavírus não seja tão mortífera quanto a peste negra; talvez não sejamos capazes de viver vidas heroicas como esses dois grandes santos. Podemos, porém, de certa forma, aprender deles que, em cada tempo confuso, como o nosso, Deus nos pede uma resposta e nos chama, ainda mais, para uma santidade pessoal.

Fontes: São Bernardino de Sena – Paulo Thureau-Dangin; Chalers Borromeu - Selected Orations, Homilies and Wrtings – Editado por John R. Clark; Encyclopedia of Pestilence, Pandemics and Plagues, Greenwood Press; The medical response to the Black Death – Joseph A. Legan; The Great Mortality – Jonh Kelly

 

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