‘A opinião pública tem o direito de conhecer a verdade, sem a manipulação ideológica’

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25 de outubro de 2017

Os dias seguintes à coletiva de imprensa de 18 de outubro na Cúria Metropolitana (leia detalhes na página 14) foram de intensas críticas ao apoio da Arquidiocese de São Paulo à Plataforma Sinergia, que detém a tecnologia para a produção da Farinata, produto alimentício que será adotado pela Prefeitura de São Paulo como parte do projeto “Alimento para Todos”, estruturado a partir da lei 16.704/2017, que cria a Política Municipal de Erradicação da Fome e da Promoção Social dos Alimentos.

Em entrevista exclusiva ao O SÃO PAULO , o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo Metropolitano, reitera o apoio à proposta da Plataforma Sinergia como uma alternativa para a solução do problema da fome, do descarte de alimentos e do consequente dano ambiental pelo excessivo desperdício. Ele também lamenta que a opinião pública não tenha tido acesso às informações corretas da proposta e que as reflexões na sociedade ainda não estejam sobre o ponto central do programa. “Na discussão em questão, o que deveria estar em primeiro lugar é a pessoa do pobre, a luta contra o vergonhoso desperdício de alimentos, que gera muitos danos ambientais, e o bem da ‘casa comum’. Isso deveria estar acima de interesses partidários e constituir a plataforma comum para o engajamento de todos”, afirmou. 

Leia a seguir a íntegra da entrevista.

 

O SÃO PAULO - MESMO APÓS A COLETIVA DE IMPRENSA REALIZADA NO DIA 18 PELA ARQUIDIOCESE, A PLATAFORMA SINERGIA E A PREFEITURA DE SÃO PAULO, PERMANECEM QUESTIONAMENTOS SOBRE A QUALIDADE E A VIABILIDADE DO USO DA FARINATA PARA AUXILIAR NO COMBATE À FOME NA CIDADE. A QUE O SENHOR ATRIBUI A INSISTÊNCIA DE ALGUNS SETORES DA SOCIEDADE EM DESQUALIFICAR ESSA INICIATIVA DA PLATAFORMA SINERGIA?

Cardeal Odilo Pedro Scherer - A opinião pública tem o direito de ter informações corretas sobre as questões que estão em jogo nessa polêmica: 1)  Sobre o programa da Prefeitura – “Alimento para Todos”, é a Prefeitura que deve dar as explicações adequadas; 2) A lei municipal, assinada pelo Prefeito João Doria, é resultante de um projeto de lei na Câmara Municipal, de autoria do vereador Gilberto Natalini, que foi aprovado com grande consenso. Essa lei trata do direito ao alimento e das medidas para viabilizar o que ela prevê. A própria lei é de domínio público e está na base do programa “Alimento para Todos”; 3) A Farinata, produto alimentício semelhante à farinha, é obtida da transformação de vários alimentos ainda bons, transformados através de um processo próprio para lhes proporcionar ainda uma ulterior durabilidade. Da Farinata podem ser produzidos vários produtos prontos para o consumo, como pão, macarrão, bolo, pizza etc. Não se trata de “rejeitos” de alimentos, nem de alimentação de qualidade questionável. Quem deve dar as informações sobre a Farinata é a detentora de sua patente, a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) chamada Plataforma Sinergia. A insistência em desqualificar a Farinata, ao meu ver, tem diversos motivos, entre os quais a forma inadequada como foi apresentada ao público, a desinformação, o envolvimento ideológico e partidário e o interesse eleitoral de diversos setores. Infelizmente, a Farinata foi identificada com um derivado dela, logo “carimbado” como “ração” e tido como “indigno” dos pobres e da pessoa humana. Grande equívoco, se não foi maldade! O repasse irrefletido desse equívoco pelas mídias não deu mais espaço para uma compreensão serena e objetiva da própria Farinata e das possibilidades alimentares que ela pode oferecer. Volto ao início da resposta: a opinião pública tem o direito de conhecer a verdade das coisas, sem a manipulação ideológica de quem quer que seja.

 

O SENHOR JÁ DISSE EM OUTRAS ENTREVISTAS QUE A INICIATIVA DA PLATAFORMA SINERGIA NÃO É UM PROJETO DO GOVERNO JOÃO DORIA. PODE NOS RECORDAR QUANDO TOMOU CIÊNCIA DA PROPOSTA DA PLATAFORMA E COMO A TEM APOIADO DESDE ENTÃO?

De fato, desde 2012, acompanho com interesse a elaboração da proposta da Plataforma Sinergia, porque creio que ela vai na linha da solução de três questões que apelam à consciência e preocupam muito a Igreja: 1) O escândalo da fome no mundo e no Brasil também; 2) O também escândalo do enorme desperdício de alimentos bons para o consumo. O Brasil é um campeão no desperdício de alimentos; 3) O pesado dano ambiental causado pelo desperdício e mau aproveitamento dos alimentos.

 

ALGUMAS PESSOAS, INCLUINDO ALGUNS LÍDERES RELIGIOSOS, AFIRMAM QUE A ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO NÃO DEVERIA APOIAR UMA INICIATIVA QUE DARÁ “MIGALHAS AOS POBRES”. O QUE O SENHOR TEM DIZER A RESPEITO?

Penso que devemos ter diante de nós a meta ideal a ser buscada e lutar por ela. Neste caso, a meta é que os pobres tenham condições de vida digna, respeito à sua humana dignidade e seus direitos, alimento com qualidade, moradia, roupa, casa, escola, trabalho, segurança, além de outros bens necessários à vida digna. Para alcançar essas metas, todos devem se empenhar e, mais ainda, os governantes. No entanto, não devemos deixar de fazer aquilo que hoje nos é possível, mesmo que ainda não satisfaça integralmente as necessidades e os direitos dos pobres. Além do mais, os pobres precisam ser ajudados aqui e agora. O Papa Francisco nos lembra: pobre tem nome, rosto, idade, momento e lugar onde vive. Pobre não é simplesmente uma categoria ideal ou ideológica. Pobre é pessoa concreta. Se não temos ainda a solução ideal, não devemos deixar de fazer o que está ao nosso alcance.

 

QUE RESPOSTA O SENHOR DARIA A OUTRAS CRÍTICAS QUE PODEM SER RESUMIDAS NO SEGUINTE PENSAMENTO: “AO APOIAR UMA INICIATIVA COMO ESSA, A IGREJA ESTÁ ENXERGANDO O POBRE COMO UM ‘COITADINHO’ E DEIXANDO DE COLABORAR PARA QUE ELE, EFETIVAMENTE, MUDE SUA CONDIÇÃO DE VIDA”?

A resposta já está na questão anterior, mas acrescento que o pobre, para a Igreja, não é um “coitadinho”. Esse é um clichê aplicado à Igreja de maneira preconceituosa, mas é equivocado. Para a Igreja, o pobre é uma pessoa concreta, com dignidade e direitos a serem respeitados e valorizados em cada pessoa pobre. Talvez se pretenda que a Igreja deva se alinhar a um partido específico ou não deva trabalhar com determinado governante, porque pertence a certo partido... Mas, a Igreja não é um partido e tem suas motivações próprias para agir e não deve ser instrumentalizada para fins político- partidários. Na discussão em questão, o que deveria estar em primeiro lugar é a pessoa do pobre, a luta contra o vergonhoso desperdício de alimentos, que gera muitos danos ambientais, e o bem da “casa comum”. Isso deveria estar acima de interesses partidários e constituir a plataforma comum para o engajamento de todos. 
 

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O combate à fome e ao desperdício não tem partido

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20 de outubro de 2017

Em todo o Brasil, 7 milhões de pessoas passam fome diariamente, conforme dados do IBGE, enquanto dezenas de toneladas de alimentos são desperdiçadas por ano. A Igreja, que não é indiferente a esse problema, por meio de suas instituições pastorais, realiza a obra de misericórdia de “dar de comer a quem tem fome”, além de estimular ações similares da sociedade. 

Desde o começo desta década, a Arquidiocese de São Paulo acompanha a atuação da Plataforma Sinergia, uma organização sem fins lucrativos, fundada em 2008 por Rosana Perrotti, que tem como foco o combate à fome e que desenvolveu um sistema de beneficiamento de alimentos que não são comercializados pelas indústrias, supermercados e varejo em geral, mas que estão bons para o consumo. “Este sistema transforma todo tipo de alimento em uma nutrição de emergência chamada Farinata, que possui no mínimo dois anos de vida útil e preserva todas as propriedades nutricionais originais”, explica a Plataforma em seu site

Em março de 2012, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo Metropolitano, participou da inauguração da primeira central de beneficiamento da Plataforma Sinergia, em São Paulo. A iniciativa também vem sendo acompanhada pela Cáritas Arquidiocesana, em sintonia com o constante apelo do Papa Francisco para a erradicação da fome e do desperdício de alimentos. “A realidade atual exige uma maior responsabilidade em todos os níveis, não só para garantir a produção necessária ou a distribuição equitativa dos frutos da terra, mas sobretudo para garantir o direito de todo ser humano de alimentar-se segundo as próprias necessidades”, disse o Pontífice, na segunda-feira, 16, em discurso na sede da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

 

Amplo projeto de erradicação da fome

Em novembro de 2013, após acolher contribuições da Plataforma Sinergia, da Cáritas Arquidiocesana e de outras entidades, o deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP) apresentou à Câmara o projeto de lei n° 6867/2013, propondo a criação da Política Nacional de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos. A iniciativa foi aprovada pela Câmara no mês passado e desde o último dia 9 está sendo apreciada pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, agora como PLC 104/2017.  

A base da redação do projeto de lei também já foi apresentada à Assembleia Legislativa de São Paulo, ao Governo do Estado e à Presidência da República, durante o governo de Dilma Rousseff (PT). Também na Câmara Municipal de São Paulo, tramitou como o projeto de lei 550/2016, por iniciativa do vereador Gilberto Natalini (PV), e foi aprovada pela casa e sancionada pelo Prefeito João Doria Júnior (PSDB) na semana passada, instituindo o projeto “Alimento para Todos”.

Pela nova lei, a Prefeitura é obrigada a criar uma política de promoção da função social dos alimentos, a fim de que os processos de produção, beneficiamento, transporte, distribuição, armazenamento, comercialização, exportação, importação ou transformação industrial tenham como resultado o consumo humano de forma justa e solidária, evitando desperdícios. Também passa a ser considerado como inadequado o descarte, a incineração, o lançamento em aterros sanitários ou lixões, a inutilização ou a reciclagem de alimentos considerados aptos ao consumo humano. 

Como parte dessa iniciativa, a Prefeitura firmou uma parceria com a Plataforma Sinergia para que os alimentos de boa qualidade e dentro do prazo de vencimento sejam destinados para a produção do chamado Allimento, cuja matéria prima é a Farinata. 

 

Mal-entendido e desinformação 

Ao anunciar o projeto “Alimento para Todos”, a Prefeitura apresentou um dos possíveis produtos feitos a partir da Farinata: um biscoito, que chegou a ser chamado de “ração para os pobres” por alguns veículos de comunicação e nas redes sociais. 

“O Allimento é seguro, está pronto para consumo e ainda pode ser balanceado para atender às diferentes demandas nutricionais. Ele pode ser simplesmente adicionado às refeições, mas também é possível utilizá-lo no preparo de outros alimentos, como pães, snacks, bolos, massas e sopas”, esclareceu a Prefeitura em seu site, garantindo que este “não substituirá alimentos já disponibilizados pela gestão municipal”. 

Diante da polêmica gerada, o Cardeal Odilo Pedro Scherer reiterou, em entrevista a alguns jornalistas, na segunda-feira, 16, que apoia a iniciativa da Plataforma Sinergia. “É uma proposta que tem três questões boas: o enfretamento da fome, a questão ambiental e o combate ao desperdício de alimentos”, disse

Dom Odilo recordou que a Arquidiocese de São Paulo apoiou a Plataforma Sinergia na elaboração de um projeto de lei que adequasse a legislação de doação de alimentos para dar maior segurança aos doadores e garantir a qualidade dos alimentos. 

O Cardeal também disse aos jornalistas que já provou alimentos feitos com Farinata. “Não teria problemas em consumi-los todos os dias. Dependendo de como são preparados, podem ser alimentos deliciosos. Portanto, não é, como se tem lido por aí, lixo dado aos pobres. O direito dos pobres é não passar fome, o direito dos pobres é ter alimentos. Agora, não se pode dizer que a Farinata é alimento total para os pobres. Não é. É uma possibilidade a mais de alimento, que de outra maneira iria para o lixo, com todos os inconvenientes ambientais e do escândalo do desperdício”, comentou.

O Arcebispo de São Paulo ressaltou, ainda, que o projeto não é uma iniciativa criada pelo Prefeito João Doria. “Ele recebeu esse projeto aprovado pela Câmara, é o prefeito e tem que sancionar ou rejeitar. Sancionou”, afirmou. “Seria uma pena se uma coisa que nasce para ser boa, por equívocos ou manipulação política, seja de qual lado for, viesse de alguma forma a ser amputada ou boicotada. Os prejudicados seriam os pobres e o meio ambiente do Brasil”. 

Carlos Camargo, Diretor-Tesoureiro da Cáritas Arquidiocesana, que acompanha as discussões sobre a adoção da Farinata, lamentou que tenha havido distorções sobre o propósito da iniciativa. “Esse projeto passou por um longo processo de discussão e de formulação. Foi aprovado desde o começo pela Arquidiocese e pela Cáritas Arquidiocesana. A Rosana Perrotti teve o cuidado e atenção de levar o projeto para a Santa Sé, para a Cáritas Internacional e para a FAO. Em todos esses ambientes, ela recebeu um expressivo apoio, inclusive do Papa Francisco”, recordou ao O SÃO PAULO

Ainda segundo o Diretor-Tesoureiro da Cáritas Arquidiocesana, “não há vínculo entre a proposta do combate à fome por meio dessa tecnologia, com ações de qualquer partido. Aliás, observe-se que a lei foi levada à Câmara Municipal por vereadores de diversos partidos”, pontuou, destacando que os objetivos maiores da iniciativa são a erradicação da fome em todo o mundo e a criação de um estoque de alimentos para situações emergenciais. 

Camargo esclareceu, ainda, que Cáritas Arquidiocesana e a Arquidiocese não têm qualquer influência sobre a maneira pela qual a Farinata e os produtos dela decorrentes serão distribuídos: “A Cáritas e Arquidiocese apoiam, incentivam e estimulam esse projeto. Nós apresentamos ideias, conselhos, levamos nosso apoio, e ,por enquanto, é isso que nos cabe”.

 

As contradições da fome e do desperdício de alimentos

-  Mais de 800 milhões de pessoas passam fome no mundo, enquanto se desperdiça 1,3 bilhão de toneladas de alimentos;
-  Mais de 7 milhões de pessoas passam fome diariamente no Brasil, enquanto aproximadamente 41 mil toneladas de alimento são desperdiçados no País;
-  O desperdício de alimentos gera custos de US$ 940 bilhões de dólares por ano mundialmente (algo próximo a R$ 3 trilhões).
Fontes: FAO, IBGE e World Resources Institute
 
(Com informações da Agência Senado, Câmara Notícias, Plataforma Sinergia e Prefeitura de São Paulo).
(Colaboraram: Rafael Alberto, Jenniffer Silva e Flavio Rogério)
 

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