SÃO PAULO

Ivanise Esperidião

‘Vivemos um luto inacabado, uma dor para a qual não existe remédio’

Por Nayá Fernandes
27 de novembro de 2017

Impulsionada pelo desaparecimento da filha mais velha, Ivanise Esperidião criou o Movimento Mães da Sé

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Fotos e cartazes estão por todos os lados na sala, localizada no 9° andar do edifício na Rua São Bento, número 370, no centro de São Paulo, por onde já passaram mais de dez mil pessoas buscando ajuda. O local abriga, desde 2009, a sede do Movimento Mães da Sé, fundado por Ivanise Esperidião da Silva Santos, 56. Natural de Alagoas, Ivanise veio com o marido para São Paulo há 37 anos e aqui nasceram as duas filhas do casal, Fabiana e Fagna Esperidião da Silva. 

A família morava na região de Pirituba, Zona Noroeste de São Paulo e vive, ainda hoje, as consequências dolorosas do desaparecimento da filha mais velha, Fabiana, no dia 23 de dezembro de 1995, quando a adolescente tinha 13 anos. 

“Mãe, ela foi na casa da Damaris com a Luciana, mas ela já vem”, disse a irmã de Fabiana, ao ser perguntada pela mãe, que acabava de chegar em casa, sobre o paradeiro da filha. “Naquele dia minha filha tinha saído para visitar uma colega de escola que estava fazendo aniversário, mas não tinha festa. Ela foi acompanhada de uma amiga que morava há 300 metros da nossa casa. No retorno, elas se separaram e cada uma foi em direção à sua casa. Foi neste trajeto que minha filha desapareceu”, contou Ivanise, à reportagem do O SÃO PAULO. 

Como tinha começado uma chuva forte, a mãe imaginou que a filha estava esperando a chuva passar para voltar para casa. E, assim que a chuva diminui, ela pegou o guarda-chuva e foi em busca de Fabiana, mas soube que as amigas já tinham se despedido há muito tempo. “Nós morávamos na Rua Nova Araçá, número 104 e, do lugar onde elas se separaram para minha casa, não dava mais do que 120 metros de distância”, contou Ivanise. 

Após fazer o boletim de ocorrência na delegacia – depois de ser dissuadida pelo delegado na noite do desaparecimento e de ter esperado mais de três horas, no dia seguinte – Ivanise começou uma busca solitária, como ela mesma disse. Eles disseram que ela devia esperar, e que, provavelmente, a filha tinha fugido com algum namorado e logo voltaria para casa. “Mas eu conhecia minha filha e sabia que ela não faria aquilo. Já se foram quase 22 anos e eu não tive nunca mais nenhuma notícia dela”, disse, emocionada, a fundadora das Mães da Sé.

 

O SÃO PAULO – COMO FOI A FUNDAÇÃO DO MOVIMENTO MÃES DA SÉ?

Ivanise Esperidião - Eu tinha conhecido, por intermédio de uma amiga da faculdade, o Centro Brasileiro em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, que ficava no Rio de Janeiro. O Centro trabalhava com todo tipo de violação dos direitos das crianças e dos adolescentes, e o desaparecimento era um deles. Enviei a foto e os dados da Fabiana e eles prometeram divulgar. Eu já tinha ido a muitas emissoras de televisão e rádio em São Paulo, mas o desaparecimento não era uma causa que estava em pauta naquela época e pouco se falava sobre isto. Um dia, me ligaram do Rio de Janeiro. Disseram que, na novela Explode Coração, iriam divulgar o caso de crianças desaparecidas e se eu gostaria de participar. Percebi que aquela era minha oportunidade e eles divulgaram a foto e o nome da Fabiana na novela, em rede nacional. Tive muita esperança, mas não recebi nenhum telefonema com notícias sobre ela. Porém, jornalistas de grandes veículos em São Paulo me procuraram para saber mais sobre a história do desaparecimento e, naquele momento, no início de 1996, eu falei tudo o que estava vivendo. Desabafei sobre o descaso da polícia no caso da mi
nha filha e disse que, se outras mães estivessem vivendo o mesmo que eu, que nos uníssemos para buscar pelos nossos filhos. Isso foi num sábado. No domingo, comecei a receber telefonas, que não pararam até hoje.

 

E POR QUE “MÃES DA SÉ”?

No início, eu não sabia bem o que fazer e marquei com as mães que me ligavam para que nos encontrássemos na Praça da Sé, no dia 31 de março de 1996. Eu pedia que elas levassem cartazes com as fotos e os dados dos seus filhos. Quando eu cheguei ao local, naquele dia, já havia mais de 100 pessoas. Escolhi a Praça da Sé, pois lá era o local da cidade de São Paulo onde as pessoas se reuniam para reivindicar seus direitos. Nos três primeiros anos, nós trabalhamos na minha casa e só em 1999 tivemos uma primeira sede. Era um espaço coletivo, que abrigava diversas ongs e movimentos, na Praça da República. Mas, em 2009 o Governo do Estado de São Paulo pediu o espaço e nos mudamos para cá [Rua São Bento, 370].

 

QUANTAS PESSOAS JÁ PASSARAM POR AQUI E, DESSAS, HOUVE UM NÚMERO SIGNIFICATIVO DE REENCONTROS?

Nós temos mais de 10 mil registros de desaparecimentos e, desses, 4.534 pessoas foram encontradas. As pessoas vêm aqui quando não têm mais saída, quando já passaram pela delegacia, já fizeram suas buscas individuais, e nós procuramos dar apoio para essas mães. Digo mães, porque 99% das pessoas que nos procuram são mães. Os pais que vêm (ou vieram nesses 21 anos) eu quase posso contar nos dedos.

 

QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS MOTIVOS DE DESAPARECIMENTO? PODEMOS IDENTIFICAR GRUPOS MAIS VULNERÁVEIS?

A grande maioria é composta por famílias de baixa renda, algumas inclusive abaixo da linha pobreza. Há grupos mais vulneráveis sim que são compostos por pessoas com alguma deficiência ou transtorno mental; idosos com Alzheimer e adolescentes que passam por conflitos familiares. Neste caso, os desaparecimentos estão relacionados a fugas do lar. Pela nossa experiência podemos dizer também que, no caso dos meninos, grande parte é aliciada para o tráfico de drogas e, já em relação às meninas, ocorrem abusos sexuais seguidos de morte.

 

VOCÊ JÁ TEVE ALGUMA PISTA SOBRE O PARADEIRO DA SUA FILHA?

Nenhuma. Nunca ninguém a viu. Nos três meses que se seguiram ao desaparecimento eu procurava nas ruas, nos hospitais, no Instituto Médico Legal, na Região da Cracolândia. Ficava na rua, saía todos os dias em busca dela. Eu cheguei quase à loucura, não dormia, comecei a ficar doente. Enquanto mães, temos uma preocupação muito grande em dar o melhor para os nossos filhos. Dentro das nossas condições, queremos dar a eles a melhor educação, uma boa estrutura, sonhamos que eles um dia se casem, tenham também seus filhos. A Fabiana era uma menina carinhosa e muito estudiosa. Eu sabia que ela não fugiria de casa simplesmente. Hoje sei que não foi só a minha filha que desapareceu. Depois dela, eu não consegui terminar a faculdade [Ivanise cursava Direito e concluiu o 7º semestre], desenvolvi várias doenças, 7 anos depois me separei do meu esposo.

 

VOCÊ TEM ESPERANÇA DE REENCONTRAR SUA FILHA?

Sempre. No meu coração, eu sinto que ela está viva. E vou continuar procurando. Tem dias em que a saudade dói mais sabe... Nós, mães de filhos desaparecidos, vivemos um luto inacabado, uma dor para a qual não existe remédio.
 

As opiniões expressas na seção “Com a palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal O SÃO PAULO.
 

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