‘Crise ecológica vem de uma crise em nossos corações’

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06 de junho de 2018

Um dos maiores aliados do Papa Francisco na promoção de iniciativas internacionais que defendam o meio ambiente é o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu. Ele é o principal líder de 300 milhões de cristãos da Igreja Ortodoxa, o “primeiro entre pares”, amplamente reconhecido, inclusive pelos católicos. As duas Igrejas estão divididas desde o histórico cisma de 1054, que separou Oriente e Ocidente. Mas com o passar dos anos se aproximam cada vez mais, especialmente desde o encontro entre o Papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras, em 1964.

As nossas Igrejas são chamadas a oferecer modelos alternativos de vida baseados numa abordagem do ser humano em sua relação com Deus, como uma criatura que anseia a vida eterna, vivendo em fraternidade e amor com o outro”, afirmou Sua Santidade Bartolomeu, em entrevista exclusiva ao O SÃO PAULO.

A reportagem procurou o Patriarcado Ecumênico cerca de um mês antes da visita de Bartolomeu a Roma, no fim de maio, pedindo que ele respondesse a algumas perguntas por escrito. Após o encontro com Papa Francisco e uma palestra na Fundação Centesimus Annus-Pro Pontefice, o Patriarca Ecumênico respondeu.

Desde que Francisco assumiu o trono do apóstolo Pedro, uma intensa relação se criou com o Patriarca Bartolomeu, tradicionalmente reconhecido como sucessor do apóstolo André. A defesa do meio ambiente como criação divina, que o Papa Francisco eternizou na encíclica Laudato Si’, há tempos já era um tema levantado e discutido mundialmente por Bartolomeu.

“A crise ecológica é uma questão que afeta o mundo natural, mas decorre de uma crise em nossos corações”, analisa o Patriarca Ecumênico. “É fácil culpar os outros pela destruição do planeta, mas também devemos nos perguntar se a criação é realmente mais segura nas mãos dos cristãos”, alertou. “Devemos perceber que, como membros da criação, não somos o centro do mundo.”

Unidos nessa e em outras empreitadas, juntos os dois deram vários passos na direção da completa reunião, desejada e sonhada, entre Oriente e Ocidente. O Patriarca de 78 anos almeja, em seu ministério, fazer o mundo voltar a perceber que precisa de Deus: “Se você quer uma resposta sobre minhas preocupações, eu me concentraria na seguinte questão fundamental: como as pessoas podem transformar o mundo tornando-se discípulas de Cristo.”

Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.

 

O SÃO PAULO - SANTIDADE, O SENHOR VISITOU ROMA E O PAPA HÁ POUCOS DIAS. E DEU UMA PALESTRA SOBRE O TEMA “UMA AGENDA CRISTÃ COMUM PARA O BEM COMUM”. QUAIS SÃO OS FRUTOS DESSA VISITA?

 

Patriarca Ecumênico Bartolomeu – Cada encontro com o Papa Francisco é uma nova oportunidade para voltarmos a registrar as boas relações entre nossas duas Igrejas e nossa vontade de continuar o caminho para a unidade. É o encontro de dois irmãos, os sucessores de Pedro e André, o Primeiro-Chamado, e cada evento desse tipo simboliza nossa herança comum, mas, acima de tudo, a responsabilidade comum que compartilhamos como Pastores para o futuro do Cristianismo.

No título do nosso discurso, nos deparamos com a palavra “comum” duas vezes. A própria Igreja é o lugar do “comum”, um evento de partilha, de amor e abertura, uma “comunhão de relações”. Hoje, a humanidade está enfrentando uma crise séria nos seus resultados sociais em escala global. Como afirmamos em nosso discurso, “esta crise mundial é uma crise de solidariedade”, um processo contínuo de “desolidarização”, que coloca em risco o próprio futuro da humanidade. É nossa profunda convicção de que o futuro da humanidade está relacionado com a resistência contra esta crise e o estabelecimento de uma “cultura de solidariedade”.

As nossas Igrejas são chamadas a oferecer modelos alternativos de vida baseados numa abordagem do ser humano em sua relação com Deus, como uma criatura que anseia a vida eterna, vivendo em fraternidade e amor com o outro. Deus está presente onde quer que exista amor e solidariedade. Nossas Igrejas resistem à injustiça e a todos os poderes que minam a coesão social, apresentando o conteúdo social do Evangelho. É crença comum do Papa Francisco e nossa que os problemas ecológicos atuais devem ser abordados em conexão com a crise social. É este espírito da nossa Mensagem Comum com o Papa Francisco no Dia Mundial da Criação (1º de setembro de 2018).

Gostaríamos, ainda, de expressar nossa alegria pela oportunidade que tivemos, mais uma vez, de nos encontrarmos com o Papa Emérito Bento XVI, a quem nos associamos em conhecimento de longo prazo e apreciação mútua. Foi um prazer compartilharmos nossos pensamentos sobre vários assuntos espirituais.

 

PENSANDO NAQUELES QUE NÃO ESTÃO TÃO FAMILIARIZADOS COM A IGREJA ORTODOXA, QUAIS SÃO SUAS PRINCIPAIS PREOCUPAÇÕES HOJE, COMO PATRIARCA ECUMÊNICO E PASTOR DE UMA IGREJA TÃO IMPORTANTE?

 

Inquestionavelmente, uma das nossas principais preocupações é que a humanidade experimente a magnificência do Cristianismo e a transformação que nosso Senhor Jesus Cristo trouxe ao universo. Um equívoco comum entre nossos irmãos é pensar que essa magnificência se refere apenas à arte ou à cultura.

Frequentemente, buscam a suprema magnificência da fé cristã na [basílica de] Santa Sophia e no Monastério Chora em Constantinopla [cidade renomeada Istambul pelos turcos], ou em Ravenna, nas pinturas de Giotto, na moderna e maravilhosa catedral de Oscar Niemeyer, no Brasil, com seus anjos suspensos no alto, ou na música bizantina e em melodias gregorianas. Mas o esplendor do Cristianismo não se encontra apenas aí. O Cristianismo é representado pelos incontáveis atos de amor, bondade, compaixão, perdão e sacrifício das pessoas – atos motivados pelo desejo de viver como discípulos de nosso Senhor Jesus Cristo.

Um verdadeiro cristão é alguém que dá sua comida a uma pessoa faminta; alguém que oferece água a um irmão que está com sede; alguém que abriga um estranho; alguém que veste um ser humano nu; alguém que visita uma pessoa presa; alguém que cuida de um homem doente; alguém que tem uma coisa boa a dizer sobre todas as pessoas, mesmo aquelas que discordam dele; alguém que ajuda aqueles que o odeiam; alguém que não julga os outros; alguém que ama seus adversários.

Tais atos de caridade, embora difíceis de cumprir, são uma parte natural do ser cristão. Tais discípulos de Cristo são “o sal da terra”, como nosso Senhor ensina no Santo Evangelho. A glória do Cristianismo são os frutos surpreendentes da fé em Cristo, o coração da bondade amorosa, o amor e a solidariedade para com os nossos semelhantes e a certeza do destino eterno de todos.

Se você quer uma resposta sobre minhas preocupações, eu me concentraria na seguinte questão fundamental: como as pessoas podem transformar o mundo tornando-se discípulas de Cristo.

 

O QUE INSPIRA AS AÇÕES DOS CRISTÃOS ORTODOXOS E CATÓLICOS NO CAMINHO À UNIDADE?

 

Com os cristãos ocidentais, compartilhamos um caminho comum durante o primeiro milênio da história do Cristianismo. Nossas Igrejas provaram a amarga tristeza da separação por muitos séculos, após o cisma de 1054. O cisma foi uma experiência dolorosa para os dois lados, independentemente de quem tenha responsabilidade por isso.

Tudo mudou depois do histórico encontro entre o Papa Paulo VI e o Patriarca Ecumênico Atenágoras, em Jerusalém, em 1964, que levou ao levantamento comum dos anátemas [condenação] entre as duas Igrejas. Seguindo o exemplo de nossos predecessores e comemorando aquele momento único para nossas duas Igrejas, 50 anos depois daquele encontro histórico, nos reunimos novamente em 2014 com nosso irmão Papa Francisco em Jerusalém e outras partes da Terra Santa. Confirmamos nossa firme convicção de que precisamos do amor e do apoio uns dos outros.

O primeiro encontro entre o Papa e o Patriarca Ecumênico, em 1964, iniciou um diálogo teológico de verdade e amor entre nossas duas Igrejas; o quinquagésimo aniversário desta reunião confirmou que o nosso desejo de unidade exige mais atos de caridade e amor.

 

JUNTOS, O SENHOR E O PAPA FRANCISCO PEDEM MAIS RESPEITO À CRIAÇÃO, AO MEIO AMBIENTE. ESSA É UMA PREOCUPAÇÃO QUE OS UNE?

 

É um fato inegável que nosso planeta enfrenta sérios problemas, em grande parte devido ao abuso humano sem precedentes da criação de Deus. Tal interferência humana provocou uma crise ecológica. A atmosfera está sendo poluída cada vez mais; a água limpa está se tornando mais escassa, já que estamos poluindo nossos oceanos, rios e lagos. Estamos destruindo milhares de hectares de florestas. Mudanças no clima do planeta levaram à perda de muitas espécies da nossa flora e fauna…

Acreditamos que essas coisas ocorreram por causa de nossa gradual separação e alienação de Deus. Mesmo nós, cristãos, que muitas vezes nos orgulhamos de nossa fé, nos distanciamos de Deus. É fácil culpar os outros pela destruição do planeta, mas também devemos nos perguntar se a Criação é realmente mais segura nas mãos dos cristãos.

A crise ecológica é uma questão que afeta o mundo natural, mas decorre de uma crise em nossos corações. À medida que procuramos desenvolver soluções concretas e baseadas em fatos, devemos também nos concentrar na necessidade de arrependimento pessoal, o que traria uma “mudança de pensamento” e uma mudança em nossos modos de vida. E, à medida que mudamos nossas vidas, devemos perceber que, como membros da criação, não somos o centro do mundo. Nós dependemos de Deus; Deus não depende de nós.

 

PODERIAM CATÓLICOS E ORTODOXOS SONHAR COM, UM DIA, CELEBRAR A PÁSCOA NA MESMA DATA? O SENHOR ESTÁ OTIMISTA NESSE SENTIDO?

 

O assunto de uma celebração comum da Páscoa é importante e complicado. Precisa ser tratado delicadamente para evitar escândalos entre os fiéis. No entanto, esta questão é de grande preocupação para a Igreja Ortodoxa.

A ideia de uma data comum de Páscoa para os ortodoxos e católicos foi levantada no trabalho regular da Conferência Pan-Ortodoxa de 1923, em Constantinopla, e, mais tarde, durante a Reunião do Comitê Preparatório de 1930 no Monte Athos. Desde então, tem sido discutido durante muitos encontros inter ortodoxos. Isso mostra nosso sincero desejo e esperança de que, como cristãos ortodoxos, celebremos a Páscoa no mesmo dia que outros irmãos cristãos.

Uma data comum da Páscoa entre cristãos orientais e ocidentais nos livrará, entre outras coisas, de muitas dificuldades práticas, especialmente importantes para os fiéis de ambas as Igrejas, que residem em países onde a Ortodoxia ou o Catolicismo não são a religião predominante. A verdade é que a Igreja Ortodoxa terá dificuldade em aceitar qualquer decisão que negligencie o que já foi determinado sobre este assunto pelo Primeiro Concílio Ecumênico em Niceia (325 dC). Oramos, no entanto, e esperamos que o Deus Todo-Poderoso guie nossos passos.

 

COMO O SENHOR DESCREVERIA O DIÁLOGO ENTRE CRISTÃOS E MUÇULMANOS HOJE?

 

Em abril passado, respondendo ao gentil convite do honorável Professor Dr. Ahmad Al-Tayyeb, Grande Imã da Universidade Al-Azhar e Presidente do “Conselho de Sábios” do Islã Sunita, Sua Santidade o Papa Francisco e eu visitamos o Egito para participar de uma reunião inter-religiosa. Destacou-se o papel da religião em alcançar e manter a paz no mundo. Nós enfatizamos a necessidade da humanidade de abraçar a fé e reconhecer a presença de Deus. Também a necessidade de respeitar o pluralismo e as diferenças.

Para este fim, o Patriarcado Ecumênico iniciou um diálogo com o Judaísmo e o Islã. É nossa responsabilidade trabalhar com pessoas de diversas origens. Esperamos que nossa cooperação com outras tradições religiosas, especialmente em questões sociais, traga grandes frutos para o mundo inteiro. Para a Igreja Ortodoxa, a liberdade religiosa e a liberdade de consciência são uma parte imperativa do processo; não podemos aceitar, sob qualquer circunstância, o estímulo de sentimentos fanáticos contra outras religiões.

Acreditamos firmemente que o diálogo religioso, e reuniões entre líderes religiosos, ajudarão as pessoas a superar seus medos e passarão do conflito para a reaproximação e a convivência pacífica. Por fim, nem a guerra nem a indiferença ao sofrimento das pessoas são consistentes com o ensinamento religioso. Como já mostramos várias vezes, a guerra em nome da religião é, na verdade, uma guerra contra a própria religião.

 

COMO O SENHOR EXPRESSA SUA PREOCUPAÇÃO PELOS CRISTÃOS PERSEGUIDOS NO ORIENTE MÉDIO E LUGARES ONDE COMUNIDADES ORIGINAIS CORREM O RISCO DE DESAPARECER?

 

A perseguição aos cristãos preocupa imensamente e é fonte de grande pesar para nós. Infelizmente, essa perseguição não se limita ao Oriente Médio. Os cristãos são perseguidos também em outros cantos do mundo onde existe uma chamada “cristianofobia”. Na Europa e em muitas sociedades ocidentais, as políticas de secularização e descristianização representam um sério desafio para o Cristianismo.

Mas há algo desconhecido dos perseguidores do Cristianismo: a fé em Jesus Cristo é governada pelo espírito de paz, amor, perdão e serviço. Nós não procuramos explorar e dominar os outros. A realidade atual na Europa e em outras partes do mundo prova que toda realização cultural e, principalmente, a realização social, nascem de princípios cristãos. Assim, a perseguição ao Cristianismo leva, na verdade, à perseguição da cultura e de valores únicos que embelezam nosso mundo.

Sem dúvida, a situação que ocorre no Oriente Médio é alarmante. Muitos cristãos são perseguidos, enquanto outros são forçados a fugir de sua terra natal. Nós expressamos nossas sérias preocupações inúmeras vezes aos líderes mundiais; lembramos que ainda não descobrimos o paradeiro dos dois Hierarcas sequestrados, o Metropolita Grego-Ortodoxo, Paul, e o Bispo siríaco, John Ibrahim, ambos de Alepo. Aguardamos ansiosamente para receber notícias das autoridades regionais e globais e rezamos pelo seu retorno seguro.

A Igreja Ortodoxa, como foi afirmado na Encíclica do Santo e Grande Conselho, convocado na ilha de Creta, na Grécia, em junho de 2016, “está particularmente preocupada com a situação que os cristãos enfrentam, e outras minorias étnicas e religiosas perseguidas no Oriente Médio. Em particular, ela dirige um apelo aos governos da região para proteger as populações cristãs – ortodoxos, orientais e outros cristãos – que sobrevivem no berço do Cristianismo. Os cristãos indígenas e outras populações gozam do direito inalienável de permanecer em seus países como cidadãos com direitos iguais”.

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