A Gripe Espanhola e a Cidade de São Paulo

Por
11 de mai de 2020

No século XX, houve uma pandemia muito similar à que hoje vivemos. Uma gripe transmitida de pessoa a pessoa e causada por mutações de um vírus altamente contagioso, que atingiu o mundo inteiro e justificou medidas de quarentena, afetando o funcionamento de templos religiosos e a vida de, praticamente, todas as pessoas.

Se olharmos fotos tiradas durante a Gripe Espanhola, constataremos as semelhanças em relação ao novo coronavírus: pessoas usando máscaras caseiras nas ruas e evitando o contato entre si; corpos a espera de um enterro pela sobrecarga do sistema carcerário; famílias passando dificuldade econômica devido às medidas de distanciamento social.

A Gripe Espanhola, apesar das semelhanças com o novo coronavírus, teve notas próprias que a distinguem da atual pandemia e fizeram dela, pelo menos em números absolutos, a segunda pandemia mais letal da história, atrás, apenas, da Peste Negra. Se considerarmos, entretanto, que os surtos da Peste Negra duraram mais de um século, enquanto que a Gripe Espanhola afetou o mundo por apenas dois anos, podemos afirmar que, em tão curto espaço de tempo, nenhuma doença vitimou tanto quanto a Gripe Espanhola.

Doença causada pela mutação do vírus H1N1, a Gripe Espanhola atingiu o mundo em três surtos epidêmicos nos anos de 1918 e 1919. Devido à mutação viral, as pessoas não haviam desenvolvido em seu sistema imunológico defesa contra o invasor, o que justificou a rápida proliferação da doença.

As estimativas acerca do número de mortes variam bastante: as mais conservadoras estimam 25 milhões; enquanto que outras chegam a afirmar 50 milhões ou mesmo 100 milhões de mortos. Num mundo com 2 bilhões de pessoas, a gripe vitimou, pelo menos, 1% da população, um número bastante alto. Se considerarmos a estimativa mais catastrófica, a gripe vitimou 4% da população. Para uma breve comparação, se a mesma proporção fossa aplicada ao mundo de hoje, 1% da população mundial equivaleria a 77 milhões de pessoas e 4% seriam 308 milhões.

A origem geográfica da Gripe Espanhola ainda não foi estabelecida. Alguns dizem que se originou nos Estados Unidos, outros na China. O nome dado à doença, portanto, não diz respeito ao local de sua origem. A gripe se chama espanhola porque a Espanha foi o primeiro país a divulgá-la e tomar medidas contra ela, já que os outros países europeus e os Estados Unidos estavam preocupados com a 1a Guerra Mundial. A neutralidade espanhola na Guerra fez da Espanha o primeiro país a notar a existência da epidemia.

A primeira das três ondas epidêmicas ocorreu em março de 1918, durante a 1a  Guerra Mundial. Apesar de não se saber em que país europeu a doença primeiro chegou, em julho do mesmo ano já havia se espalhado por toda Europa Ocidental, chegando, inclusive, a atingir a Polônia. Apesar de sua rápida proliferação, o vírus na primeira onda não se demonstrou tão fulminante. Apenas a partir da segunda onda epidêmica, quando o vírus sofreu uma mutação, a gripe vitimou milhões.

No inverno europeu seguinte, a partir do mês de agosto de 1918, teve início a segunda onda. Surtos da doença ocorreram em quase todas as partes habitadas do planeta. O extremo oriente foi atingido. Na Índia, 10 milhões de pessoas morreram. Nas ilhas do Pacífico, estimam-se 550 mil mortos. Neste período, a doença atingiu o Brasil.

A Gripe Espanhola no Brasil

A Gripe Espanhola chegou ao Brasil a barco, na missão médica militar que o Brasil enviara ao Senegal Francês, já infestado pela doença. O navio voltou ao Brasil com poucos sobreviventes, pois grande parte da tripulação morreu pela Gripe.

As autoridade ficaram alertas e, para impedir que a doença se espalhasse no país, tomaram medidas como a desinfecção e a quarentena de todos os navios provenientes da África e a reabertura do Lazarento da Ilha Grande, lugar para isolamento dos doentes. Entretanto, nada disso foi suficiente.

Em 1918, outro barco apinhado de doentes abarcou na Bahia, vindo da Europa. De lá, a doença espalhou-se para Pernambuco, Pará e Rio de Janeiro. Em outubro de 1918, a doença já tinha atingido todos os estados da Federação.

O estado que mais sofreu, entretanto, foi o de São Paulo.

A doença em São Paulo

O ano de 1918 foi especialmente difícil para o Estado de São Paulo. O Brasil, tradicional exportador de café, teve que se modernizar industrialmente para suprir a demanda interna, já que, com o começo da 1o Guerra Mundial, a importação de produtos industrializados tornou-se difícil.

São Paulo liderava o País na industrialização, impulsionado pela riqueza do café. A classe operária aumentava, e, em 50 anos, a população da cidade de São Paulo cresceu aproximadamente 15 vezes.

A cidade de São Paulo atraiu imigrantes, que acreditavam nas promessa de prosperidade econômica. A prosperidade da cidade lhe rendeu o apelido de a “Chicago brasileira”. O ano de 1918 colocou um freio à bonança paulistana.

O inverno foi um dos mais rigorosos já registrados; geadas e temperaturas negativas foram registradas em vários pontos do estado, colocando em risco grande parte de sua produção agrícola. A praga da lagarta rosa destruiu quase tudo que havia resistido às geadas. Depois da lagarta, vieram os gafanhotos, que destruíram ainda mais a produção agrícola.

Como se isso não bastasse, em meados de outubro a Gripe Espanhola chegou ao estado.

A cidade de São Paulo já possuía diversos hospitais, como a Santa Casa de Misericórdia, o Hospital da Beneficência Portuguesa e o Hospital Umberto I, além da famosa Faculdade de Medicina e Cirurgia. Apesar da modernidade da metrópole em relação ao resto do país, a Gripe fez aqui um dos seus piores espetáculos.

Logo no início da pandemia, o Serviço Sanitário da cidade, sob a direção do Dr. Arthur Neiva, determinou o fechamento de escolas, clubes, teatros, cinemas e atividades esportivas e culturais. Com a piora da situação, proibiram-se também a visita aos doentes nos hospitais e aos cemitérios. Escolas públicas e privadas abreviaram o ano letivo. Os parques públicos foram fechados. Os agentes do Estado fiscalizavam as ruas para averiguar se as decisões do governo estavam sendo cumpridas.

No Correio Paulistano, retratou-se o ermo em que se transformaram as ruas da cidade, principalmente de noite, pois acreditava-se que ao fim do dia a doença espalhava-se mais rapidamente:

“Pelas ruas não há a turba desocupada, em que se mesclavam as fisionomias masculinas com as femininas, numa expansão de felicidade irradiante. E essa tristeza, que a gente nota durante o dia, aumenta desconsoladoramente à noite. A noite de ontem, por exemplo, depois das 21 horas, a cidade estava completamente taciturno. Os cafés e bares fecharam desde cedo. E a urbe ficou mergulhada na meia sombra de suas lâmpada elétricas”.

Hospitais improvisados foram criados. Instalados em escolas, sedes de associações ou qualquer espaço que se adequasse, eles serviam para atender a população que não conseguia vaga nos hospitais. Havia, na cidade de São Paulo, 38 hospitais ou postos de atendimento provisórios. Apesar disso, a população tinha receio de procurar esses lugares, por não aprovarem o serviço prestado.

O poder público procurava amenizar a gravidade da epidemia para não incentivar o medo na população. Entretanto, não foi suficiente. Procuravam-se remédios milagrosos contra a doença, curandeiros de todos os tipos prometiam a cura, e mitos acerca da enfermidade espalharam-se em abundância. A tradicional caipirinha pôde ter se originado como um “remédio” popular à doença.

O número de mortes eram tão grande que não era possível enterrar todos os mortos. Em 29 de outubro, houve 17 óbitos; em 3 de novembro, 141; já em 8 de novembro, 308 óbitos na cidade devido à Gripe. A empresa responsável pelos sepultamentos, não deu conta da demanda. A Prefeitura teve de começar a produzir caixões para a população pobre. No cemitério do Araçá, foram feitas instalações elétricas para que houvesse enterros noturnos. O salário oferecido aos coveiros aumentou, pois muitos morriam por contraírem a doença em seu sérvio. Além disso, prisioneiros eram chamados para cavar covas.

São Paulo perdeu, no mínimo, 1% de sua população devido à doença, o que equivale e 5,5 mil mortos. Se a mesma porcentagem fosse transferida aos dias de hoje, seriam 120 mil mortos, sem contar a população da Grande São Paulo.

À parte a tragédia das mortes, São Paulo sofreu um agravamento do estado de pobreza de suas populações mais vulneráveis. A Arquidiocese de São Paulo teve um papel fundamental no cuidado aos mais pobres durante a Gripe Espanhola, ajuda encabeçada pelo então Arcebispo, Dom Duarte Leopoldo e Silva.

A Arquidiocese de São Paulo

Coube à Igreja grande parte do auxílio às populações carentes. Dom Duarte Leopoldo e Silva foi designado pelo governador de São Paulo, Altino Arantes, como responsável pela coordenação dos socorros aos necessitados durante a epidemia.

Em tempos em que não havia saúde pública, o serviço aos mais pobres era oferecido quase em sua totalidade por instituições ligadas à Igreja Católica. O Estado tinha que recorrer a ela, pois, de outro modo, os mais pobres seriam esquecidos.

Os leigos da Conferência de São Francisco de Paula percorriam os bairros operários, levando alimentos, remédios e roupas, e comunicavam às autoridades sanitárias acerca dos novos enfermos e requeriam a instalação de hospitais perto das áreas onde vivia a população mais carente.

O descaso do poder público com a população pobre afetada diretamente com as medidas de quarentena só pôde ser contrabalanceado com a atuação da Igreja. Os “órfãos da epidemia”, crianças que perderam ambos os pais pela doença, eram entregues a instituições controladas pela Arquidiocese.

“Com o Sr. Arcebispo Dom Duarte, combinei a internação dos ‘órfãos da epidemia’, enquanto não se lhes encontre colocação definitiva, no Asilo da Sagrada Família, no Ipiranga, no Asilo Bom Pastor; na Cada da Divina Providências e Externato dos Irmãos Maristas, no Cambuci”, escreveu o governador em seu diário. 

A Arquidiocese, entretanto, não se limitou a prestar o auxílio material, mas, também, o espiritual à população.

O Arcebispodeterminou que as igrejas e, particularmente, os confessionários, fossem desinfetados diariamente. A água-benta tinha de ser substituída várias vezes ao longo do dia. Logo no início da peste, Dom Duarte determinou que se celebrasse diariamente a Missa pro vitanda mortalitate, vel tempore pestilentiae, cujos textos recorriam à misericórdia de Deus para pôr fim à peste e pediam a conversão dos corações. Em consonância com a atitude da Igreja nas outras epidemias (como explorado nos textos anteriores desta série), Dom Duarte via na epidemia uma oportunidade de exercer a caridade e de conversão real a Deus.

Para evitar aglomerações dentro das Igrejas, diminuíram-se drasticamente as orações coletivas diurnas, com exceção das missas, apesar do desejo do poder público. Entretanto, o Arcebispo determinou a redução do público em cada celebração. As missas e atividades noturnas foram completamente proibidas, devido à opinião corrente da época que a doença espalhava-se mais à noite.

O fim do Flagelo

Após meses de flagelo, o vírus perdeu força e a epidemia foi diminuindo na cidade. Alguns dizem que as mutações do vírus fizeram com que a doença perdesse força, outros justificam que grande parte da população se imunizou naturalmente. Pouco a pouco, a cidade foi retomando suas atividade cotidianas. No dia 19 de dezembro de 1918, o Dr. Arthur Neiva anunciou a suspensão do estado epidêmico.

Dom Duarte ordenou a suspensão das celebrações da missa pro vitanda mortalitate, vel tempore pestilentiae e determinou que fossem celebradas, em seu lugar, a Missa pelos enfermos. 

A epidemia deixou marcos profundos na cidade. Os “dias malditos” ficaram marcados no imaginário paulistano por muito tempo e reverberam ainda hoje, nos tempos pandêmicos em que vivemos.

 

Fontes: 1918 – A Gripe Espanhola: Os Dias Malditos – João Paulo Martino; The Spanish Flu – Bryan Anderson; A Pandemia de Gripe Espanhola de 1918 na “Metrópole do Café” – Leandro Carvalho Damacena Neto.

Comente

Para pesquisar, digite abaixo e tecle enter.