O ‘sonho social’ do Papa Francisco para a Amazônia

Por
25 de fevereiro de 2020

Uma carta de amor à Amazônia. Assim definiu o Cardeal Michael Czerny a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia, do Papa Francisco, publicada no dia 12. O documento é uma reflexão do Papa após o Sínodo para a Amazônia, a assembleia especial do Sínodo dos Bispos dedicada exclusivamente à região amazônica.
A enorme diversidade de povos tradicionais, a presença da Igreja há mais de 400 anos na região, o surgimento de grandes cidades, as migrações, as comunidades isoladas, as disputas por território e o esgotamento das riquezas naturais colocam a Amazônia no centro de um intenso debate internacional.
O que se faz da Amazônia hoje determinará que tipo de sociedade global seremos amanhã. Por isso, o Papa apresentou seus quatro “sonhos” para a Amazônia nessa “carta de amor”. O primeiro deles é social, o segundo é cultural, o terceiro é ecológico e o quarto, eclesial.
Em uma série de quatro análises, O SÃO PAULO apresenta chaves de leitura para essas categorias, começando pelo sonho social.

CRISE ECOLÓGICA É TAMBÉM SOCIAL
Com o auxílio da ciência, o Papa Francisco faz um diagnóstico importante: os problemas ecológicos e os problemas sociais têm a mesma raiz. Ele afirmava isso já em sua Encíclica Laudato Si’, de 2015.
Esse alerta para o mundo se repete com força em Querida Amazônia. A crítica a um modelo econômico que explora a natureza de maneira desenfreada, priorizando o lucro sobre a “casa comum”, o planeta Terra, é a mesma contra a perpetuação das desigualdades sociais.
O “clamor da terra” é, também, “o clamor dos pobres”, diz ele (QAm 8). Os povos nativos e os mais pobres são os mais afetados pela destruição da natureza, que acentua os desastres naturais, a perda de seus territórios, as migrações forçadas, a pobreza, o tráfico de pessoas, o crescimento das periferias de grandes cidades e a corrupção (QAm 10,21).
Por isso, o Papa Francisco sonha “com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos originários, dos últimos, em que sua voz seja escutada e sua dignidade seja promovida”. Da mesma forma, não basta defender a natureza e esquecer a vida humana. “Não nos serve um conservacionismo que se preocupa com o bioma, mas ignora os povos amazônicos”, escreve (QAm. 7, 8).

UM ESPAÇO A SER OCUPADO?
Por trás da promessa de desenvolvimento da Amazônia, que, na verdade, leva dor e sofrimento aos povos locais, está uma concepção errada de que a Amazônia é “um espaço vazio a ser ocupado”, afirma o Papa Francisco.
Em Querida Amazônia, ele observa que a Amazônia não é “uma riqueza bruta que deve se desenvolver” e tampouco “uma imensidade selvagem que deve ser domesticada”. Pelo contrário, é necessário respeitar a presença e as tradições dos povos nativos e as terras que a eles sempre pertenceram (QAm 12,13).

DIREITO DOS POVOS
O Papa Francisco dá voz aos povos indígenas ao repetir um apelo que é comum entre os que defendem seus interesses: qualquer iniciativa ou projeto que envolva a Amazônia deve, necessariamente, consultar os povos tradicionais, principais “interlocutores” da região (QAm 25).
“Aos empreendimentos, nacionais ou internacionais, que causam dano na Amazônia e não respeitam o direito dos povos originários ao território e à sua demarcação, à sua autodeterminação e ao consentimento prévio, há que dar-lhes os nomes que lhes correspondem: injustiça e crime”, denuncia Francisco (QAm 14).
A privatização da água potável, a exploração ilegal de madeira, a extração de petróleo, a construção de grandes estradas e usinas hidrelétricas, o garimpo, a expansão da fronteira do agronegócio, essas e outras atividades, quando realizadas fora da lei e com a conivência dos governos, “contaminam o ambiente e transformam indevidamente as relações econômicas, e se convertem em um instrumento que mata” (QAm 14).
Ele lembra que a sociedade ocidental pode aprender com os indígenas a ter “um forte sentido comunitário” (QAm 20), em suas relações humanas, ritos e celebrações.

DESIGUALDADE EXTREMA
Alguns dos donos do poder chegam a tirar a vida daqueles que se opõem à expansão de seus negócios ilegais, provocando também incêndios florestais intencionais e subornando políticos. As disparidades de poder na Amazônia entre os poderosos e os pobres criam “novas formas de escravidão”, diz o Papa.
Essas mazelas são acompanhadas de violações dos direitos humanos, do tráfico de pessoas, especialmente das mulheres, e do tráfico de drogas. “Não podemos permitir que a globalização se converta em um novo tipo de colonialismo”, denuncia (QAm 14).
“A disparidade de poder é enorme, os fracos não têm recursos para se defender. Enquanto o ganhador continua levando tudo para si, os povos pobres permanecem sempre pobres, e os ricos se fazem cada vez mais ricos”, afirma o Santo Padre (QAm 13).
Ele também reconhece que, muitas vezes, membros da própria Igreja estiveram metidos nos jogos de poder. No período colonial, foram cometidos erros históricos de injustiça e crueldade. O Papa admite que, por vezes, “o trigo se misturou com o joio” e foram cometidos “crimes contra os povos originários durante a chamada conquista da América” (QAm 19). Por esses erros ele, mais uma vez, pediu perdão. 

SÃ INDIGNAÇÃO
A primeira reação necessária a todos os problemas sociais da Amazônia, defende Francisco, é a indignação. “É necessário indignar-se […] Não é saudável que nos acostumemos com o mal”, diz o Pontífice. 
No entanto, “ao mesmo tempo que deixamos brotar uma sã indignação, recordamos que sempre é possível superar as diversas mentalidades de colonização para construir redes de solidariedade e desenvolvimento”, respeitando o meio ambiente e as diferentes culturas da Amazônia (QAm 17).
Francisco também recorda o valor dos missionários que se indignaram e chegaram à Amazônia, especialmente nas últimas décadas, deixando seus 
países e adotando um estilo de vida simples, levando o Evangelho aos que mais sofrem.
“No momento atual, a Igreja não pode estar menos comprometida, e é chamada a escutar o clamor dos povos amazônicos para poder exercer com transparência seu papel profético”, exorta o Papa (QAm 19).
Uma Igreja de rosto amazônico que acompanha os pobres é o sonho social do Papa Francisco para a Amazônia. Isso inclui ver a Amazônia livre da “discriminação e da dominação” entre seres humanos e, no lugar disso, “relações fraternas” e reconhecimento mútuo (QAm 22). Pois, se tudo está interligado, escutar o outro “é um dever de justiça” (QAm 26).

Comente

QUERIDA AMAZÔNIA

Por
13 de fevereiro de 2020

Apresentamos a seguir um resumo dos principais pontos da Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia”, publicada na quarta-feira, 12, pelo Papa Francisco. 

  •  Promoção da ecologia integral que engloba o cuidado com as pessoas, especialmente os mais pobres, o meio ambiente e a espiritualidade ecológica, numa perspectiva católica.
  •  Reconhecimento das ameaças ambientais aos ecossistemas amazônicos e da importância da região como um todo para os equilíbrios globais do planeta.
  •  Posicionamento da Igreja a favor da cultura local, do encontro intercultural e do respeito à autonomia dos povos.
  •  Valorização dos governos locais e sociedade civil no desenvolvimento sustentável, defendendo a solidariedade internacional, mas se contrapondo à internacionalização da Amazônia.
  •  Inculturação da fé e centralidade de Cristo: não é suficiente levar uma “mensagem social”. Os povos amazônicos têm “direito ao anúncio do Evangelho”; do contrário, “cada estrutura eclesial transformar-se-á em mais uma ONG”.
  •  Permanência do celibato sacerdotal. Promoção de uma “cultura eclesial própria, marcadamente laical” e “incisivo protagonismo dos leigos”  na vida da Igreja na Amazônia.
  •  Reconhecimento da importância das mulheres na Igreja, começando por Maria Santíssima. Abertura de novos espaços às mulheres, mas sem clericalizações – consequentemente, rejeição da proposta de acesso à Ordem sacra para as mulheres.

POR QUE UM TEXTO DO PAPA SOBRE A AMAZÔNIA?
Ponto 41 – “Na Amazônia, compreendem-se melhor as palavras de Bento XVI, quando dizia que, ‘ao lado da ecologia da natureza, existe uma ecologia que podemos designar “humana”, a qual, por sua vez, requer uma “ecologia social”. E isto requer que a humanidade (...) tome consciência cada vez mais das ligações existentes entre a ecologia natural, ou seja, o respeito pela natureza, e a ecologia humana’. Esta insistência em que ‘tudo está interligado’ vale especialmente para um território como a Amazônia.”

A PROPOSTA DO DOCUMENTO PAPAL
Ponto 7 – “Sonho com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida.
Sonho com uma Amazônia que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.
Sonho com uma Amazônia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.
Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazônia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos.”

SOBRE O DOCUMENTO FINAL DO SÍNODO
Pontos 3-4 – “Nesta Exortação, preferi não citar o documento, convidando a lê-lo integralmente. Deus queira que toda a Igreja se deixe enriquecer e interpelar por este trabalho, que os pastores, os consagrados, as consagradas e os fiéis leigos da Amazônia se empenhem na sua aplicação e que, de alguma forma, possa inspirar todas as pessoas de boa vontade.”

SOBRE A ECOLOGIA INTEGRAL 
O documento papal aponta para uma ecologia integral: cuidar do meio ambiente e cuidar dos pobres são “inseparáveis”.
Ponto 8 – “O nosso sonho é o de uma Amazônia que integre e promova todos os seus habitantes, para poderem consolidar o ‘bem viver’. Mas impõe-se um grito profético e um árduo empenho em prol dos mais pobres. Pois, apesar do desastre ecológico que a Amazônia está a enfrentar, deve-se notar que ‘uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra quanto o clamor dos pobres’. Não serve um conservacionismo ‘que se preocupa com o bioma, porém ignora os povos amazônicos’.”
Ponto 41 – “Numa realidade cultural como a Amazônia, onde existe uma relação tão estreita do ser humano com a natureza, a vida diária é sempre cósmica. Libertar os outros das suas escravidões implica certamente cuidar do seu meio ambiente e defendê-lo e – mais importante ainda – ajudar o coração do homem a abrir-se confiadamente àquele Deus que não só criou tudo o que existe, mas, também, Se nos deu a Si mesmo em Jesus Cristo. O Senhor, que primeiro cuida de nós, ensina-nos a cuidar dos nossos irmãos e irmãs e do ambiente que Ele nos dá de presente cada dia. Esta é a primeira ecologia que precisamos.”

ATIVIDADES ECONÔMICAS PRATICADAS DE MANEIRA JUSTA E SUSTENTÁVEL
Ponto 17 – “Ao mesmo tempo em que nos deixamos tomar por uma sã indignação, lembremo-nos de que sempre é possível superar as diferentes mentalidades de colonização para construir redes de solidariedade e desenvolvimento: ‘o desafio é assegurar uma globalização na solidariedade, uma globalização sem marginalização’. Podem-se encontrar alternativas de pecuária e agricultura sustentáveis, de energias que não poluem, de fontes dignas de trabalho que não impliquem a destruição do meio ambiente e das culturas. Simultaneamente, é preciso garantir, para os indígenas e os mais pobres, uma educação adequada que desenvolva as suas capacidades e empoderamento. É precisamente nestes objetivos que se mede a verdadeira solércia e a genuína capacidade dos políticos. Não servirá para devolver aos mortos a vida que lhes foi negada, nem para compensar os sobreviventes daqueles massacres, mas ao menos para hoje sermos todos realmente humanos.”

NEOCOLONIALISMO
Os povos amazônicos, afirma, sofrem uma “sujeição”, seja por parte dos poderes locais, seja por parte dos poderes externos. Com São João Paulo II, o Papa Francisco reitera que a globalização não deve se tornar um novo colonialismo.
Ponto 14 – “Às operações econômicas, nacionais ou internacionais, que danificam a Amazônia e não respeitam o direito dos povos nativos ao território e sua demarcação, à autodeterminação e ao consentimento prévio, há que rotulá-las com o nome devido: injustiça e crime. Quando algumas empresas sedentas de lucro fácil se apropriam dos terrenos, chegando a privatizar a própria água potável, ou quando as autoridades deixam mão livre a madeireiros, a projetos mineradores ou petrolíferos e outras atividades que devastam as florestas e contaminam o ambiente, transformam-se indevidamente as relações econômicas e tornam-se um instrumento que mata. É usual lançar mão de recursos desprovidos de qualquer ética, como penalizar os protestos e mesmo tirar a vida dos indígenas que se oponham aos projetos, provocar intencionalmente incêndios florestais, ou subornar políticos e os próprios nativos. Ao acompanhar tudo isto, temos graves violações dos direitos humanos e novas escravidões que atingem especialmente as mulheres, a praga do narcotráfico que procura submeter os indígenas ou o tráfico de pessoas que se aproveita daqueles que foram expulsos de seu contexto cultural. Não podemos permitir que a globalização se transforme num ‘novo tipo de colonialismo’.”
Ponto 29 – “Na Amazônia, vivem muitos povos e nacionalidades, sendo mais de 110 os povos indígenas em isolamento voluntário (PIAV). A sua situação é fragilíssima; e muitos sentem que são os últimos depositários de um tesouro destinado a desaparecer, como se lhes fosse permitido sobreviver apenas sem perturbar, enquanto avança a colonização pós-moderna. Temos que evitar de os considerar como ‘selvagens não civilizados’; simplesmente criaram culturas diferentes e outras formas de civilização, que antigamente registraram um nível notável de desenvolvimento.”
Ponto 33 – “Quero lembrar agora que ‘a visão consumista do ser humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada atual, tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade’. Isto afeta muito os jovens, quando se tende a ‘dissolver as diferenças próprias do seu lugar de origem, transformá-los em sujeitos manipuláveis feitos em série’. Para evitar esta dinâmica de empobrecimento humano, é preciso amar as raízes e cuidar delas, porque são ‘um ponto de enraizamento que nos permite crescer e responder aos novos desafios’. Convido os jovens da Amazônia, especialmente os indígenas, a ‘assumir as raízes, pois das raízes provém a força que [os] fará crescer, florescer e frutificar’. Para quantos deles são batizados, incluem-se nestas raízes a história do povo de Israel e da Igreja até o dia de hoje. Conhecê-las é uma fonte de alegria e, sobretudo, de esperança que inspira ações válidas e corajosas.”

ENCONTRO INTERCULTURAL
Ponto 37 – “É a partir das nossas raízes que nos sentamos à mesa comum, lugar de diálogo e de esperanças compartilhadas. Deste modo, a diferença, que pode ser uma bandeira ou uma fronteira, transforma-se numa ponte. A identidade e o diálogo não são inimigos. A própria identidade cultural aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece. Por isso, não é minha intenção propor um indigenismo completamente fechado, a-histórico, estático, que se negue a toda e qualquer forma de mestiçagem. Uma cultura pode tornar-se estéril, quando ‘se fecha em si própria e procura perpetuar formas antiquadas de vida, recusando qualquer mudança e confronto com a verdade do homem’. Isto poderia parecer pouco realista, já que não é fácil proteger-se da invasão cultural. Por isso, cuidar dos valores culturais dos grupos indígenas deveria ser interesse de todos, porque a sua riqueza é também a nossa.” 

INTERESSES ECONÔMICOS E INTERNACIONALIZAÇÃO
A Igreja está a favor do papel dos governos locais e sociedade civil no desenvolvimento sustentável, ao mesmo tempo que é contra a internacionalização da Amazônia.
Ponto 50 – “Com efeito, além dos interesses econômicos de empresários e políticos locais, existem também ‘os enormes interesses econômicos internacionais’. Por isso, a solução não está numa ‘internacionalização’ da Amazônia, mas a responsabilidade dos governos nacionais torna-se mais grave. Pela mesma razão, ‘é louvável a tarefa de organismos internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos sistemas de pressão, para que cada governo cumpra o dever próprio e não delegável de preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou internacionais.”

A INCULTURAÇÃO DO EVANGELHO
Ponto 67 – “São João Paulo II ensinou que a Igreja, ao apresentar a sua proposta evangélica, ‘não pretende negar a autonomia da cultura. Antes, pelo contrário, nutre por ela o maior respeito’, porque a cultura ‘não é só sujeito de redenção e de elevação; mas pode ter também um papel de mediação e de colaboração’. E, dirigindo-se aos indígenas do Continente Americano, lembrou que ‘uma fé que não se torna cultura é uma fé não de modo pleno acolhida, não inteiramente pensada, nem com fidelidade vivida’. Os desafios das culturas convidam a Igreja a uma ‘atitude de prudente sentido crítico, mas também de atenção e confiança’.”

EVANGELIZAÇÃO QUE INTEGRA O SOCIAL AO ESPIRITUAL
Ponto 62 – “Perante tantas necessidades e angústias que clamam do coração da Amazônia, é possível responder a partir de organizações sociais, recursos técnicos, espaços de debate, programas políticos… e tudo isso pode fazer parte da solução. Mas, como cristãos, não renunciamos à proposta de fé que recebemos do Evangelho. Embora queiramos empenhar-nos lado a lado com todos, não nos envergonhamos de Jesus Cristo. Para quantos O encontraram, vivem na sua amizade e se identificam com a sua mensagem, é inevitável falar d’Ele e levar aos outros a sua proposta de vida nova: ‘Ai de mim, se eu não evangelizar!’ (1 Cor 9,16).”
Ponto 64 – “Eles [os povos amazônicos] têm direito ao anúncio do Evangelho, sobretudo àquele primeiro anúncio que se chama querigma e ‘é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar de uma forma ou de outra’. É o anúncio de um Deus que ama infinitamente cada ser humano, que manifestou plenamente este amor em Cristo crucificado por nós e ressuscitado na nossa vida. Proponho voltar a ler um breve resumo deste conteúdo no capítulo IV da Exortação Christus Vivit. Este anúncio deve ressoar constantemente na Amazônia, expresso em muitas modalidades distintas. Sem este anúncio apaixonado, cada estrutura eclesial transformar-se-á em mais uma ONG e, assim, não responderemos ao pedido de Jesus Cristo: ‘Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura’ (Mc 16,15).”
Ponto 76 – “Ao mesmo tempo, a inculturação do Evangelho na Amazônia deve integrar melhor a dimensão social com a espiritual, para que os mais pobres não tenham necessidade de ir buscar fora da Igreja uma espiritualidade que dê resposta aos anseios da sua dimensão transcendente.”

A SANTIDADE COM ROSTO AMAZÔNICO
Ponto 77 – “Assim poderão nascer testemunhos de santidade com rosto amazônico, que não sejam cópias de modelos doutros lugares, santidade feita de encontro e dedicação, de contemplação e serviço, de solidão acolhedora e vida comum, de jubilosa sobriedade e luta pela justiça. Chega-se a esta santidade ‘cada um por seu caminho’, e isto aplica-se também aos povos, nos quais a graça se encarna e brilha com traços distintivos. Imaginemos uma santidade com traços amazônicos, chamada a interpelar a Igreja universal.”

A relação da Igreja Católica e as tradições espirituais indígenas
Ponto 79 – “É possível receber, de alguma forma, um símbolo indígena sem o qualificar necessariamente como idolátrico. Um mito denso de sentido espiritual pode ser valorizado, sem continuar a considerá-lo um extravio pagão. Algumas festas religiosas contêm um significado sagrado e são espaços de reunião e fraternidade, embora se exija um lento processo de purificação e maturação. Um verdadeiro missionário procura descobrir as aspirações legítimas que passam por meio das manifestações religiosas, às vezes imperfeitas, parciais ou equivocadas, e tenta dar-lhes resposta a partir duma espiritualidade inculturada.”
Ponto 80 – “Será, sem dúvida, uma espiritualidade centrada no único Deus e Senhor, mas, ao mesmo tempo, capaz de entrar em contato com as necessidades diárias das pessoas que procuram uma vida digna, querem gozar as coisas belas da existência, encontrar a paz e a harmonia, resolver as crises familiares, curar as suas doenças, ver os seus filhos crescerem felizes. O pior perigo seria afastá-los do encontro com Cristo, apresentando-O como um inimigo da alegria ou como alguém que é indiferente às aspirações e angústias humanas. Hoje é indispensável mostrar que a santidade não priva as pessoas de ‘forças, vida e alegria’.”

MINISTÉRIO SACERDOTAL E MINISTÉRIO LAICAL
Promocão de uma “cultura eclesial própria, marcadamente laical” e “incisivo protagonismo dos leigos” na vida da Igreja na Amazônia. 
Ponto 87 – “O modo de configurar a vida e o exercício do ministério dos sacerdotes não é monolítico, adquirindo matizes diferentes nos vários lugares da terra. Por isso, é importante determinar o que é mais específico do sacerdote, aquilo que não se pode delegar. A resposta está no sacramento da Ordem sacra, que o configura a Cristo sacerdote. E a primeira conclusão é que este caráter exclusivo recebido na Ordem deixa só ele habilitado para presidir à Eucaristia. Esta é a sua função específica, principal e não delegável. Alguns pensam que aquilo que distingue o sacerdote seja o poder, o fato de ser a máxima autoridade da comunidade; mas São João Paulo II explicou que, embora o sacerdócio seja considerado ‘hierárquico’, esta função não equivale a estar acima dos outros, mas ‘ordena-se integralmente à santidade dos membros do corpo místico de Cristo’. Quando se afirma que o sacerdote é sinal de ‘Cristo cabeça’, o significado principal é que Cristo constitui a fonte da graça: Ele é cabeça da Igreja ‘porque tem o poder de comunicar a graça a todos os membros da Igreja’.”
Ponto 89 – “Nas circunstâncias específicas da Amazônia, especialmente nas suas florestas e lugares mais remotos, é preciso encontrar um modo para assegurar este ministério sacerdotal. Os leigos poderão anunciar a Palavra, ensinar, organizar as suas comunidades, celebrar alguns sacramentos, buscar várias expressões para a piedade popular e desenvolver os múltiplos dons que o Espírito derrama neles. Mas precisam da celebração da Eucaristia, porque ela ‘faz a Igreja’, e chegamos a dizer que ‘nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da Santíssima Eucaristia’. Se acreditamos verdadeiramente que as coisas estão assim, é urgente fazer com que os povos amazônicos não estejam privados do alimento de vida nova e do sacramento do perdão.”
Ponto 92 – “Ora a Eucaristia, como fonte e cume, exige que se desenvolva esta riqueza multiforme. São necessários sacerdotes, mas isto não exclui que ordinariamente os diáconos permanentes – deveriam ser muitos mais na Amazônia –, as religiosas e os próprios leigos assumam responsabilidades importantes em ordem ao crescimento das comunidades e maturem no exercício de tais funções, graças a um adequado acompanhamento.”
Ponto 93 – “Portanto, não se trata apenas de facilitar uma presença maior de ministros ordenados que possam celebrar a Eucaristia. Isto seria um objetivo muito limitado, se não procurássemos também suscitar uma nova vida nas comunidades. Precisamos promover o encontro com a Palavra e o amadurecimento na santidade por meio de vários serviços laicais, que supõem um processo de maturação – bíblica, doutrinal, espiritual e prática – e distintos percursos de formação permanente.”
Ponto 94 – “Uma Igreja de rostos amazônicos requer a presença estável de responsáveis leigos, maduros e dotados de autoridade, que conheçam as línguas, as culturas, a experiência espiritual e o modo de viver em comunidade de cada lugar, ao mesmo tempo que deixem espaços à multiplicidade dos dons que o Espírito Santo semeia em todos. Com efeito, onde houver uma necessidade peculiar, Ele já infundiu carismas que permitam lhe dar resposta. Isto requer na Igreja capacidade para abrir estradas à audácia do Espírito, confiar e concretamente permitir o desenvolvimento duma cultura eclesial própria, marcadamente laical. Os desafios da Amazônia exigem da Igreja um esforço especial para conseguir uma presença capilar que só é possível com um incisivo protagonismo dos leigos.”

IMPORTÂNCIA DAS MULHERES NA IGREJA
Abertura de novos espaços às mulheres, mas sem clericalizações.
Ponto 99 – “Na Amazônia, há comunidades que se mantiveram e transmitiram a fé durante longo tempo, mesmo decênios, sem que algum sacerdote passasse por lá. Isto foi possível graças à presença de mulheres fortes e generosas, que batizaram, catequizaram, ensinaram a rezar, foram missionárias, certamente chamadas e impelidas pelo Espírito Santo. Durante séculos, as mulheres mantiveram a Igreja de pé nesses lugares com admirável dedicação e fé ardente. No Sínodo, elas mesmas nos comoveram a todos com o seu testemunho.”
Ponto 100 – “Isto convida-nos a alargar o horizonte para evitar reduzir a nossa compreensão da Igreja a meras estruturas funcionais. Este reducionismo levar-nos-ia a pensar que só se daria às mulheres um status e uma participação maior na Igreja se lhes fosse concedido acesso à Ordem sacra. Mas, na realidade, este horizonte limitaria as perspectivas, levar-nos-ia a clericalizar as mulheres, diminuiria o grande valor do que elas já deram e subtilmente causaria um empobrecimento da sua contribuição indispensável.”
 Ponto 103 – “Numa Igreja sinodal, as mulheres, que de fato realizam um papel central nas comunidades amazônicas, deveriam poder ter acesso a funções e inclusive serviços eclesiais que não requeiram a Ordem sacra e permitam expressar melhor o seu lugar próprio. Convém recordar que tais serviços implicam uma estabilidade, um reconhecimento público e um envio por parte do bispo. Daqui resulta também que as mulheres tenham uma incidência real e efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na guia das comunidades, mas sem deixar de o fazer no estilo próprio do seu perfil feminino.”

Comente

Papa Francisco publica a Exortação Apostólica ‘Querida Amazônia’

Por
13 de fevereiro de 2020

O Papa Francisco lançou, na quarta-feira, 12, a aguardada Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia”, que aborda os caminhos para a evangelização, o cuidado com o meio ambiente e a atenção da Igreja para com os povos da Amazônia, levando em consideração os aspectos social, cultural, ecológico e eclesial (leia o resumo dos principais pontos nas páginas 10 e 11).  
Na Exortação, Francisco explica que, com esse documento, oferece uma síntese das reflexões sobre as grandes preocupações manifestadas por ele anteriormente, trata de temas como evangelização e inculturação, preservação do meio ambiente e o desenvolvimento de uma ecologia sustentável, valorização da figura da mulher na Igreja, opção preferencial pelos pobres e da natureza da missão da Igreja. 
O Pontífice afirma que não é suficiente levar uma “mensagem social” e que os povos amazônicos têm “direito ao anúncio do Evangelho”; do contrário, “cada estrutura eclesial transformar-se-á em mais uma ONG”.

PROMOÇÃO VOCACIONAL
A Exortação Apostólica também aborda caminhos para a promoção vocacional na Amazônia, em especial no ponto 90. De acordo com o Cardeal Lorenzo Baldisseri, Secretário-geral do Sínodo dos Bispos, o Papa explicitou quais são estes passos: que todos rezem pelas vocações sacerdotais; que os bispos, com generosidade, enviem sacerdotes para a Amazônia; e que as formações iniciais e permanentes dos presbíteros também levem em consideração aspectos da realidade amazônica, “o que toca também à questão da inculturação e da liturgia”, afirmou.

DOCUMENTOS DIFERENTES
Na coletiva de imprensa de apresentação do documento pontifício, no Vaticano, o Cardeal Michael Czerny, S.J., Secretário Especial do Sínodo dos Bispos para a Amazônia, destacou que “reconciliação, misericórdia e diálogo” são aspectos centrais apresentados por Francisco na Exortação Apostólica diante da desafiadora realidade da Amazônia.
O Cardeal também explicou que a exortação apostólica pertence ao autêntico magistério ordinário do Papa. Matteo Bruni, diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, ressaltou que os conteúdos do Documento Final do Sínodo só devem ser lidos à luz da Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia”. 

ATENÇÃO PASTORAL E SOCIAL
O Padre Adelson Araújo dos Santos, jesuíta, professor de Espiritualidade, da Pontifícia Universidade Gregoriana, comentou que os quatro eixos apresentados na Exortação são um chamado à conversão.
Questionado por jornalistas se o documento pontifício não aborda assuntos que vão além das atribuições da Igreja, o Sacerdote lembrou que é missão da Igreja se preocupar com a realidade que a circunda, como está prescrito em pontos do Catecismo, e que Francisco não é o primeiro papa a se manifestar sobre questões ecológicas e prestar solidariedade aos indígenas, algo também já feito por São João Paulo II e Bento XVI. 
Irmã Augusta de Oliveira, Superiora-geral das Servas de Maria Reparadoras, que atuam na realidade amazônica, disse que na Exortação Apostólica o Papa lembra dos direitos dos povos ribeirinhos, quilombolas, indígenas e trabalhadores do campo e da cidade na região amazônica, e ressalta o papel dos leigos e religiosos na ação pastoral e missionária da Igreja. 
O cientista Carlos Nobre, que se dedica a estudos das questões amazônicas e recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2007, afirmou que a Exortação Apostólica faz um chamado à sustentabilidade no território amazônico. “Para cuidar da Amazônia, temos que unir a antiga sabedoria indígena com as novas tecnologias”, avaliou.

Comente

Igreja na Amazônia: conversão integral, pastoral, ecológica e sinodal

Por
23 de janeiro de 2020

Cresce em todo o mundo a expectativa pela publicação da exortação apostólica pós-sinodal do Papa Francisco sobre a vida e a missão da Igreja na Amazônia. O documento será fruto da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos, realizada em outubro de 2019.

Com o tema “Amazônia, novos caminhos para a Igreja e por uma ecologia integral”, o Sínodo teve a participação dos bispos e representantes dos nove países que constituem a chamada Pan-Amazônia – Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela, incluindo a Guiana Francesa como território ultramar –, envolvendo sete conferências episcopais.

Ao término do Sínodo, que tem caráter consultivo, foi apresentado ao Pontífice um Documento Final, como fruto das reflexões e trabalhos sinodais. Nesse texto, foram destacados diagnósticos sobre a realidade dos povos amazônicos e apresentadas sugestões para a ação evangelizadora da Igreja na Amazônia. Esses diagnósticos, como afirmou o Papa Francisco em seu discurso conclusivo dos trabalhos do Sínodo, são a parte mais consistente do caminho sinodal.

Conversão, missionariedade, defesa da vida e da criação foram as palavras-chave do Documento Final. Nesta edição, o jornal O SÃO PAULO recorda os principais diagnósticos apontados pelo Sínodo:

CONVERSÃO INTEGRAL

O Sínodo ressaltou a beleza da vida na Amazônia, que hoje é “ferida e deformada” pela dor e violência. Dentre as ameaças apontadas, estão: apropriação e privatização dos bens da natureza; modelos predatórios de produção; desmatamento; poluição das indústrias extrativistas; mudanças climáticas; narcotráfico; alcoolismo; tráfico de seres humanos; a criminalização de líderes e defensores do território; e grupos armados ilegais.

O crescente fenômeno migratório também foi ressaltado, tanto no âmbito da mobilidade de grupos indígenas em territórios de circulação tradicional quanto no deslocamento forçado de populações indígenas, na migração internacional e de refugiados.

 

CONVERSÃO PASTORAL

Os padres sinodais enfatizaram que a comunidade eclesial deve ir ao encontro de todos para anunciar com alegria o Cristo ressuscitado, gerando filhos para a fé entre os povos a que serve.

A assembleia não deixou de mencionar os muitos missionários que deram a vida para anunciar o Evangelho em terras amazônicas e reconheceu a necessidade de que as congregações religiosas do mundo estabeleçam pelo menos um posto missionário em um dos países da Amazônia.

O Sínodo considerou o diálogo ecumênico e inter-religioso como “caminho indispensável da evangelização na Amazônia”, e recordou a urgência de uma pastoral indígena, especialmente para os jovens, imersos em uma crise de valores, vítimas da pobreza, violência, desemprego, novas formas de escravidão e dificuldade de acesso à educação.

Também houve uma profunda reflexão sobre a pastoral urbana, com um foco particular nas famílias, que, sobretudo nas periferias, sofrem com a pobreza, desemprego, falta de moradia e problemas de saúde.

 

CONVERSÃO CULTURAL

Na perspectiva da inculturação, foi dada atenção à piedade popular, cujas expressões devem ser valorizadas, acompanhadas, promovidas e, às vezes, “purificadas”, pois são momentos privilegiados de evangelização que devem conduzir ao encontro com Cristo.

Os bispos identificaram, ainda, a relevância dos centros de pesquisa da Igreja para estudar e recolher as tradições, as línguas, as crenças e as aspirações dos povos indígenas, encorajando o trabalho educativo a partir da sua própria identidade e cultura.

 

CONVERSÃO ECOLÓGICA

A expressão conversão ecológica teve grande destaque no Sínodo, que indica a ecologia integral, apontada pelo Papa Francisco na Encíclica Laudato Si’, como o único caminho possível para a Amazônia. A esperança é que, reconhecendo “as feridas causadas pelo ser humano” ao território, sejam procurados “modelos de desenvolvimento justo e solidário”.

Os bispos reunidos em Sínodo reafirmaram o empenho da Igreja em defender as futuras gerações, a virtude da justiça e a vida “desde a concepção até o seu fim” e propuseram, inclusive, a definição de “pecado ecológico” como “ação ou omissão contra Deus, contra o próximo, a comunidade, o meio ambiente”.

 

CONVERSÃO SINODAL

Os bispos enfatizaram a necessidade da “sinodalidade do povo de Deus”, em que todos os seus membros caminhem juntos. Apontaram a necessidade de maior participação dos leigos na vida e missão da Igreja, por meio de uma sólida formação e da valorização dos ministérios que lhes são próprios. Nesse sentido, refletiu-se sobre uma maior participação das mulheres, religiosas e leigas, na vida das comunidades eclesiais. Consideraram igualmente urgentes a promoção, formação e apoio aos diáconos permanentes.

Ao refletirem sobre a centralidade da Eucaristia à vida cristã, os padres sinodais ressaltaram a dificuldade de algumas comunidades terem acesso a este sacramento, assim como à Reconciliação e à Unção dos Enfermos, devido à falta de sacerdotes.

De igual modo, constataram a importância de que a vida consagrada nessa região tenha uma identidade amazônica, a partir de um reforço das vocações autóctones.

Espera-se que a exortação apostólica pós-sinodal sobre esse tema seja publicada nos próximos dias. Como aconteceu com os documentos pontifícios anteriores de Francisco, será apresentada pelos bispos locais nas dioceses, que promoverão eventos e estudos para conhecimento e aprofundamento de seu conteúdo.

Comente

‘Alegrai-vos e exultai’: A santidade é a meta de todo cristão

Por
12 de abril de 2018

Além de admirar os santos e rezar com eles, todo cristão deve buscar a santidade em sua própria vida cotidiana, na realidade onde se encontra, e praticá-la mesmo com pequenos gestos de caridade – não de forma individualista, mas junto a toda a comunidade, na Igreja. Esta é uma possível chave de leitura da nova exortação apostólica do Papa Francisco, Gaudete et Exsultate (Alegrai-vos e exultai), sobre o chamado à santidade no mundo contemporâneo, publicada na segunda-feira, 9. 

“Para um cristão, não é possível pensar a própria missão sobre a terra sem concebê-la como um caminho de santidade, porque esta é, de fato, vontade de Deus”, afirma o Sumo-Pontífice no texto, citando a primeira carta de São Paulo aos Tessalonicenses (4,3). “Todo santo é uma missão; é um projeto do Pai para refletir e encarnar, em um momento determinado da história, um aspecto do Evangelho”, completa. 

E mesmo os santos reconhecidos não eram pessoas sem erros ou pecados. “Talvez a vida deles não tenha sido perfeita. Mas, mesmo diante da imperfeição e de quedas, continuaram a seguir em frente e são agradáveis ao Senhor. Os santos que já alcançaram a presença de Deus mantêm conosco um laço de amor e de comunhão”, explica.

Nesse sentido, “muitas vezes, temos a tentação de pensar que a santidade é reservada àqueles que têm a possibilidade de manter distância das ocupações ordinárias, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo, cada um, o próprio testemunho nas ocupações de cada dia”, insiste Francisco

 

INTEGRAR AÇÃO E ORAÇÃO

O Papa reserva parte do texto à oração, recordando que Jesus é o caminho para o bom discernimento, em meio a desafios da vida. Inclusive, dedica grande atenção à “luta constante contra o diabo”, que, segundo o Pontífice, não é “um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia”. Para vencê-lo, é preciso usar “as armas poderosas que o Senhor nos dá: a fé que se expressa na oração e na meditação da Palavra de Deus, a celebração da missa, a adoração eucarística, a reconciliação sacramental, as obras de caridade, a vida comunitária, o empenho missionário”. 

Portanto, embora veja a oração pessoal no centro da vida cristã, a proposta de santidade apresentada pelo Papa na Gaudete et Exsultate prevê o encontro com o próximo no mundo, transformando-o por meio do serviço e do “empenho evangelizador”. 

“Não é saudável amar o silêncio e evitar o encontro com o outro, desejar o repouso e rejeitar a atividade, buscar a oração e subvalorizar o serviço. Tudo pode ser aceito e integrado como parte da própria existência neste mundo, e começa a fazer parte do caminho de santificação”, diz a Exortação. “Somos chamados a viver a contemplação também em meio à ação, e nos santificamos no exercício responsável e generoso da nossa missão.” 

Dividido em cinco capítulos, o Documento tem pouco menos de 50 páginas e abrange uma série de outros temas, sempre ligados à proposta de busca da santidade no mundo atual. O Papa denuncia, por exemplo, dois “inimigos sutis” da santidade: o gnosticismo e o pelagianismo atuais. 

O gnosticismo é, para ele, uma “vaidade superficial”, isto é, “reduzir o pensamento de Jesus a uma lógica fria que procura dominar tudo”. Trata-se de negar a transcendência e explicar tudo como os raciocínios humanos. Já o pelagianismo atual é, conforme a Exortação, uma autossuficiência que ignora a vida na comunidade formada pela Igreja. Envolve “transmitir a ideia de que se pode fazer tudo com a vontade humana, como se ela fosse algo de puro, perfeito, onipotente”. 

No terceiro capítulo, Francisco propõe as bem-aventuranças como “carteira de identidade” de todo cristão. “Como fazer para ser um bom cristão? A resposta é simples: fazer, cada um do seu modo, o que diz Jesus neste sermão”, reflete.

 

POR QUE FALAR DA SANTIDADE?

Esta é a terceira exortação do Papa Francisco, lançada exatamente dois anos após Amoris laetitia . De acordo com o Vigário de Roma, Dom Angelo De Donatis, que a apresentou em coletiva de imprensa no Vaticano, o objetivo do documento é “mostrar a atualidade perene da santidade”, uma palavra vista como “antiquada” na sociedade de hoje. 

“A proposta não é fazer um tratado nem repetir definições já amplamente estudadas pelos teólogos da Igreja”, disse o Arcebispo. “Na verdade, o Papa nos pede para ampliar o nosso olhar, refletir sobre aonde estamos indo, aonde vai a Igreja, pois ela perde o sentido se não tem clara a dimensão do caminho de santidade”, acrescentou. “Portanto, a ideia é apresentar a santidade como meta desejável do próprio caminho humano. É um chamado que Deus apresenta a cada um”, definiu.
 

Comente

A Exortação Apostólica "Gaudete et Exsultate" do Papa Francisco

Por
11 de abril de 2018

Nós nos tornamos santos vivendo as bem-aventuranças, o caminho principal porque "contra a corrente" em relação à direção do mundo. O chamado à santidade é para todos, porque a Igreja sempre ensinou que é um chamado universal e possível a qualquer um, como demonstrado pelos muitos santos "da porta ao lado".

A vida de santidade está assim intimamente ligada à vida de misericórdia, "a chave para o céu". Portanto, santo é aquele que sabe comover-se e mover-se para ajudar os miseráveis e curar as misérias. Quem esquiva-se das "elucubrações" de velhas heresias sempre atuais e quem, entre outras coisas, em um mundo "acelerado" e agressivo "é capaz de viver com alegria e senso de humor."

 

Não é um "tratado", mas um convite

É precisamente o espírito de alegria que o Papa Francisco escolhe colocar na abertura de sua última Exortação Apostólica.

O título "Gaudete et Exsultate", "Alegrai-vos e exultai," repete as palavras que Jesus dirige "aos que são perseguidos ou humilhados por causa dele”.

Nos cinco capítulos e 44 páginas do documento, o Papa segue a linha de seu magistério mais profundo, a Igreja próxima à "carne de Cristo sofredor."

Os 177 parágrafos não são – adverte -  "um tratado sobre a santidade, com muitas definições e distinções", mas uma maneira de "fazer ressoar mais uma vez o chamado à santidade", indicando "os seus riscos,  desafios e oportunidades"(n. 2).

 

A classe média da santidade

Antes de mostrar o que fazer para se tornar santos, o  Papa Francisco se detém no primeiro capítulo sobre o "chamado à santidade" e reafirma: há um caminho de perfeição para cada um e não faz sentido desencorajar-se  contemplando "modelos de santidade que lhe parecem inatingíveis" ou procurando  “imitar algo que não foi pensado para ele”. (n. 11).

"Os santos, que já chegaram à presença de Deus" nos “protegem, amparam e acompanham" (n. 4), afirma o Papa. Mas, acrescenta, a santidade a que Deus nos chama, irá crescendo com "pequenos gestos" (n. 16 ) cotidianos, tantas vezes testemunhados por “aqueles que vivem próximos de nós", a "classe média de santidade" (n. 7).

 

Razão como um Deus

No segundo capítulo, o Papa estigmatiza aqueles que define como "dois inimigos sutis da santidade", já várias vezes objeto de reflexão, entre outros, nas missas na Santa Marta, na Evangelii gaudium, bem como no recente documento da Doutrina da Fé, Placuit Deo.

Trata-se de "gnosticismo" e "pelagianismo",  duas heresias que surgiram nos primeiros séculos do cristianismo, mas continuam a ser de alarmante atualidade (n.35).

O gnosticismo – observa - é uma autocelebração de "uma mente sem encarnação, incapaz de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros, engessada numa enciclopédia de abstrações”.

Para o Papa, trata-se de uma "vaidosa superficialidade”, que pretende “reduzir o ensinamento de Jesus a uma lógica fria e dura que procura dominar tudo”. E ao desencarnar o mistério, preferem - como disse em uma missa na Santa Marta - “um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo "(nn. 37-39).

 

Adoradores da vontade

O neo-pelagianismo é, segundo Francisco, outro erro gerado pelo gnosticismo. A ser objeto de adoração aqui não é mais a mente humana, mas o "esforço pessoal", uma vontade sem humildade que “sente-se superior aos outros por cumprir determinadas normas" ou por ser fiel "a um certo estilo católico" (n. 49).

"A obsessão pela lei", “o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas”, ou "a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja" são para o Papa, entre outros, alguns traços típicos de cristãos que “não se deixam guiar pelo Espírito no caminho do amor”. (n. 57 ).

Francisco, por outro lado, lembra que é sempre o dom da graça que ultrapassa "as capacidades da inteligência e as forças da vontade humana" (n. 54). Às vezes, constata, "complicamos o Evangelho e tornamo-nos escravos de um esquema". (Nº 59)

 

Oito caminhos de santidade

Além de todas as "teorias sobre o que é santidade", existem as Bem-aventuranças. Francisco coloca-as no centro do terceiro capítulo, afirmando que com este discurso Jesus "explicou, com toda a simplicidade, o que é ser santo" (n. 63).

O Papa as repassa uma a uma. Da pobreza de coração - que também significa austeridade da vida (n. 70) - ao reagir “com humilde mansidão” em um mundo onde se combate em todos os lugares. (n. 74).

Da "coragem" de deixar-se "traspassar" pela dor dos outros e ter "compaixão" por eles - enquanto " o mundano ignora, olha para o lado" (nn 75-76.) - à sede de justiça.

“A realidade mostra-nos como é fácil entrar nas súcias da  corrupção, fazer parte desta política diária do “dou para que me deem”, onde tudo é negócio. E quantos sofrem por causa das injustiças, quantos ficam assistindo, impotentes, como outros se revezam para repartir o bolo da vida”. (nn. 78-79).

Do "olhar e agir com misericórdia", o que significa ajudar os outros "e até mesmo perdoar" (nn. 81-82), "manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor” por Deus e o próximo, isto é santidade. (n.86).

E finalmente, do "semear a paz" e "amizade social" com "serenidade, criatividade, sensibilidade e destreza" - conscientes da dificuldade de lançar pontes entre pessoas diferentes (nn. 88-89) – ao aceitar também as perseguições, porque hoje a coerência às Bem-aventuranças "pode ser mal vista, suspeita, ridicularizada" e, no entanto, não se pode esperar, para viver o Evangelho, que tudo à nossa volta seja favorável" (n. 91).

 

A grande regra do comportamento

Uma dessas bem-aventuranças, "Bem-aventurados os misericordiosos", contém para Francisco "a grande regra de comportamento" dos cristãos, aquela descrita por Mateus no capítulo 25 do "Juízo Final".

Esta página, reitera, demonstra que "ser santo não significa revirar os olhos num suposto êxtase" (n. 96), mas viver Deus por meio do amor aos últimos.

Infelizmente, observa o Papa, existem ideologias que "mutilam o Evangelho". Por um lado, cristãos sem um relacionamento com Deus, que transformam o cristianismo “numa espécie de ONG, privando-o daquela espiritualidade irradiante" vivida por São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo, Santa Teresa de Calcutá. (nº 100).

Por outro, aqueles que "suspeitam do compromisso social dos outros", considerando-o como se fosse algo de superficial, mundano, secularizado, imamentista, "comunista ou populista", ou "o relativizam" em nome de uma determinada ética.

Aqui o Papa reafirma que “a defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada” (n. 101).

Mesmo a acolhida dos migrantes - que alguns católicos,  observa, gostariam que fosse menos importante do que a bioética - é um dever de todo cristão, porque em todo estrangeiro existe Cristo, e "não se trata da invenção de um Papa, nem de um delírio passageiro" (n. 103).

 

"Gastar-se" nas obras de misericórdia

Assim, observou que "gozar a vida" como nos convida a fazer o "consumismo hedonista", é o oposto do desejar dar glórias a Deus, que pede para nos "gastarmos" nas obras de misericórdia (nn. 107-108).

No quarto capítulo, Francisco repassa as características "indispensáveis" para entender o estilo de vida da santidade: "perseverança, paciência e mansidão", "alegria e senso de humor", "audácia e fervor".

O caminho da santidade vivido como caminho "em comunidade" e "em constante oração", que chega à "contemplação", não entendida como “evasão que nega o mundo que nos rodeia” (nn. 110-152).

 

Luta vigilante e inteligente

E porque, prossegue, a vida cristã é uma luta “constante" contra a "mentalidade mundana" que "nos engana, atordoa e torna medíocres" (n. 159).

O Papa conclui no quinto capítulo convidando ao "combate" contra o "Maligno que, escreve ele, não é "um mito", mas" um ser pessoal que nos atormenta” (n. 160-161).

“Quem não quiser reconhecê-lo, ver-se-á exposto ao fracasso ou à mediocridade”. As suas maquinações, indica, devem ser contrastadas com a "vigilância", usando as "armas poderosas" da oração, a adoração eucarística, os Sacramentos e com uma vida permeada pela caridade (n. 162).

Importante, continua Francisco, é também o "discernimento", particularmente em uma época "que oferece enormes possibilidades de ação e distração" - das viagens, ao tempo livre, ao uso descontrolado da tecnologia - "que não deixam espaços vazios onde ressoa a voz de Deus ". Francisco pede cuidados especiais para os jovens, muitas vezes "expostos a um constante zapping", em mundos virtuais distantes da realidade (n. 167).

"Não se faz discernimento para descobrir o que mais podemos derivar dessa vida, mas para reconhecer como podemos cumprir melhor a missão que nos foi confiada no Batismo." (174)

Comente

Para pesquisar, digite abaixo e tecle enter.