A vida eternizada pelas lentes do coração

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15 de novembro de 2019

O horizonte profundamente escuro, o toque intenso e a audição precisa são características daqueles que, apesar de cegos, são capazes de enxergar um lugar, uma pessoa e um cenário. Com as mãos firmes, eles apoiam uma câmera fotográfica próxima à sobrancelha, e com um clique, tão particular a essa arte, o preto ganha cor, e o cenário percebido com todos esses sentidos é eternizado. 
A fotografia como uma arte para pessoas cegas não é uma novidade. O fotógrafo esloveno naturalizado francês Evgen Bavcar, que perdeu a visão ainda na adolescência em decorrência de dois acidentes, teve sua história com a fotografia iniciada quando já não enxergava.
Suas imagens são feitas por meio do diálogo com as pessoas que deseja fotografar e pela sensibilidade com o espaço em que está. Sua obra foi contada em um documentário dirigido por João Jardim e Walter Carvalho, em 2001, com o título: “Janela da Alma”.

PLENAMENTE POSSÍVEL
Inspirada por Evgen Bavcar, Hoana Gonçalves, que estudou Relações Internacionais e Audiovisual e atua como fotógrafa do Ministério da Economia, ao participar de um grupo de estudo sobre poéticas contemporâneas da Universidade de Brasília, iniciou uma pesquisa científica sobre como é a percepção de mundo das pessoas cegas. 
Ao longo dos estudos, ela notou que havia muitas opções de aulas de fotografia para deficientes auditivos, mas viu que, em Brasília (DF), somente ela desejava desenvolver um trabalho nessa linha para cegos. 
Hoana sempre acreditou ser plenamente possível cegos fotografarem e, a partir disso, em 2014, buscou a Biblioteca Braile do Distrito Federal para iniciar suas aulas: “Eu me mostrava presente para as necessidades deles e tentava entender o que eles precisariam para poder realmente fotografar. Fui percebendo que a visão deles é bem diferente da nossa e que meu maior desafio seria mostrar as limitações que as pessoas que enxergam têm, como visão, e as limitações da lente e da câmera”, falou ao O SÃO PAULO. 
As pessoas cegas, segundo Hoana, são capazes de fotografar, pois, para tal atividade, é necessário apenas entender o que se deseja registrar e, para isto, outros sentidos que não a visão imprimem a sensibilidade desejada nessa arte.
“Com essa pesquisa, eu vi que a pessoa precisa perceber o que ela quer fotografar, não exatamente enxergar. Então, ela pode perceber isso de várias maneiras – com o tato, audição, com os outros sentidos e, claro, com o coração, com o sentimento”, continuou. 

ADEQUAÇÕES 
Hoana desejava ensiná-los a fotografar com o próprio celular, para que pudessem exercitar em eventos familiares e atividades cotidianas, a fim de inseri-los socialmente. Os aparelhos dos cegos, porém, são, na maioria, muito antigos e com botões, pois são os que melhor se adaptam às suas necessidades.
Ela, então, separou algumas máquinas fotográficas antigas que tinha em casa, adequou suas oficinas, e, assim, as aulas deslancharam.

MOVIMENTO
Segundo Hoana, quando a pessoa entende que é capaz de fotografar naturalmente, surgem os sorrisos que confirmam o sucesso das aulas. Para ela, o termo “ensinar” não é o mais adequado para esses encontros, já que existe uma construção conjunta, um movimento de troca de experiências. 
 “Os sorrisos de pessoas que nunca tinham fotografado e se achavam incapazes e, que quando menos esperavam, estavam ali, tirando selfie e sorrindo muito. É difícil uma aula que eu não chore, mas é sempre de emoção e alegria. Vê-los acreditando que conseguem me faz pensar que todos conseguem”, contou.

COM UM TOQUE
O clique tem continuidade quando a imagem é impressa, e pequenos furos feitos, um ao lado do outro, dão aos alunos a oportunidade de se perceberem, com o toque de suas mãos, nas fotos que produzem. 
“É bem diferente do Braile, mas, junto com a audiodescrição, é possível que eles se percebam retratados. Acho isso muito importante, pois a pessoa cega acaba sofrendo uma grande invisibilidade na sociedade”, explicou Hoana sobre a técnica de imagens táteis que desenvolveu para acolher seus alunos.

IPÊS E CÉU AZUL 
Com as mãos percorrendo os pontos perfurados, Noemi Rocha, 59, pôde enxergar os ipês roxos, brancos e amarelos que tinham como fundo o céu intensamente azul de Brasília, antes guardados apenas em sua memória e, agora, registrados também na foto que tirou.
A aluna, que é vice-
-presidente da Academia Inclusiva de Autores Brasiliense e da Biblioteca Braile do Distrito Federal, perdeu a visão em decorrência de um acidente automobilístico aos 33 anos. 
Vaidosa, Noemi disse à reportagem que a fotografia sempre fez parte de sua vida antes de perder a visão, mas que, após se tornar deficiente visual, a paixão permaneceu adormecida. 
Fotografar foi uma das tantas coisas que precisou reaprender, mas já é ela quem registra as festas em família e os passeios com os amigos. Para Noemi, a fotografia resgata a autoestima das pessoas com deficiência visual, pois a sociedade não acredita que elas são capazes, inclusive, de registrar momentos importantes apenas com a sensibilidade de quem enxerga o invisível.

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