NACIONAL

Cezar Saldanha Souza Junior

‘Precisamos separar Estado, Governo e Administração’

Por Anelise Schuler
16 de dezembro de 2017

Cezar Saldanha defende a implantação do sistema parlamentarista e a adoção do voto distrital

Arquivo Pessoal

No Brasil, a corrupção é a principal consequência da concentração das funções de Chefe de Governo, Chefe de Estado e da Chefia de Administração. A avaliação é de Cezar Saldanha Souza Junior, Livre Docente, Doutor e Mestre em Direito pela USP, e Professor Titular de Direito Constitucional e Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 

Ao falar ao O SÃO PAULO , no Dia Internacional de Combate à Corrupção, celebrado em 9 de dezembro, Cezar Saldanha defende a implantação do sistema parlamentarista e a adoção do voto distrital. A seguir, leia a íntegra da entrevista

 

O SÃO PAULO – Por que os índices de corrupção no Brasil são tão altos, se comparados aos de outros países?

Cezar Saldanha Souza Junior - Quando falamos sobre corrupção, devemos tomar alguns cuidados. Primeiro, é preciso destacar que a corrupção é algo próprio da natureza humana, que evidencia nossa fraqueza. Portanto, a corrupção não é um problema apenas da classe política nem uma exclusividade do Brasil. Segundo, é necessário ressaltar que, atualmente, esse assunto tem ganhado muita ênfase na mídia. Então, temos a impressão de que hoje há mais corrupção do que havia no passado, o que é falso. Por incrível que pareça, o Brasil progrediu na luta contra a corrupção. Na República Velha, tínhamos eleições “fabricadas no bico da pena”. Hoje, nossas eleições são limpas. Superamos esse problema. Além disso, temos instrumentos de controle, como a Justiça Eleitoral, o Ministério Público, os Tribunais de Contas. Arrisco dizer, então, que hoje nós controlamos mais a corrupção e, por isso, ela aparece mais. Há, no entanto, um fator agravante da corrupção que ainda precisamos superar: nossa organização política é absolutamente irracional. É ultrapassada, do ponto de vista da evolução do Direito Constitucional. Ela não serve, e nunca serviu, para nossa realidade. Estou convencido de que os escândalos que presenciamos atualmente decorrem muito mais das deficiências institucionais de nossa organização do que dos dilemas éticos de nosso povo.

 

O SENHOR PODERIA EXPLICAR POR QUE A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA É IRRACIONAL?

Claro. Faço questão. A maioria dos brasileiros não percebe isso, porque aqui só conhecemos o sistema presidencialista. Nós o copiamos dos Estados Unidos e, ainda hoje, vivemos a ilusão de que o presidencialismo é um bom sistema, porque funciona lá. É apenas uma ilusão. A realidade estadunidense é muito diferente da nossa. O Estado brasileiro tem a responsabilidade de prestar muitos serviços públicos, o que não ocorre nos Estados Unidos. Essas questões socioeconômicas correspondem à função de Governo, cujas decisões são definidas por orientações ideológicas, mediadas por partidos políticos. Por essa razão, é necessário separar, em órgãos diferentes, o exercício da Chefia de Estado, da Chefia de Governo e da Chefia da Administração, adotando o sistema chamado de parlamentarismo. Este é o sistema adotado na maioria das democracias ocidentais que funcionam, como Inglaterra e Alemanha. O presidencialismo cumula o exercício dessas funções em um único órgão, a Presidência. Além disso, ele separa completamente o Poder Executivo do Poder Legislativo, comprometendo a governabilidade, quando há exigência do exercício da função de Governo de forma atuante, como ocorre no Brasil. Vou explicar: o Chefe de Estado é responsável por representar os valores de unidade da nação, sendo o árbitro das grandes questões nacionais e representando o país no exterior. O Chefe de Governo exerce a política partidária, que é disputada por diferentes pontos de vista, como em um jogo entre Palmeiras e Corinthians. Veja, não dá para o juiz que apita o jogo fazer parte de um dos times que disputam a partida. É contraditório. Do mesmo modo, Chefe de Estado e Chefe de Governo ocupam posições opostas no jogo político. Esse também é o caso da Chefia de Governo e da Chefia da Administração. A Administração Pública deve executar as políticas definidas pelo Governo de forma impessoal, técnica e, portanto, apartidária, o que é incompatível com a Chefia de Governo. O Chefe da Administração deve ser escolhido em razão de critérios técnicos, como os magistrados são escolhidos, nunca por critérios partidários. Por fim, a separação completa entre o Executivo e o Legislativo faz com que o Executivo tenha uma dificuldade enorme para aprovar suas propostas no Legislativo, precisando negociar voto a voto no “balcão de negócios”.

 

NESTE CONTEXTO, QUAL É A PRINCIPAL CONSEQUÊNCIA DE CUMULAR CHEFIA DE ESTADO E CHEFIA DE GOVERNO EM NOSSO SISTEMA POLÍTICO?

O Presidente, como Chefe de Governo, precisa tomar medidas impopulares, que provocam reações daqueles que discordam delas. Essas reações acabam abalando a legitimidade do Presidente, como Chefe de Estado, afetando o amor que os brasileiros têm pela pátria, confundindo valores nacionais, como a defesa da moralidade administrativa, com interesses individuais e partidários.

 

E QUAL É A PRINCIPAL CONSEQUÊNCIA DE CUMULAR CHEFIA DE GOVERNO E CHEFIA DE ADMINISTRAÇÃO?

É a corrupção. Quando há separação entre Chefia de Estado, Chefia de Governo e Chefia da Administração, o Chefe de Estado, como árbitro, controla a Administração Pública. Já no nosso sistema, a Administração é chefiada por políticos partidários, que, devido ao sistema eleitoral proporcional, precisam de muito dinheiro para fazer uma campanha, e acabam tentados a usar a Administração Pública para fins partidários, prometendo cargos públicos para obter favores de campanha ou usando contratos administrativos para conseguir recursos financeiros, com o fim de saldar essas dívidas. Por outro lado, a Administração Pública, influenciada pela ideologia dos governos anteriores, pode boicotar o Governo em exercício, recusando-se a executar as políticas determinadas por ele. Nesse caso, o Poder Executivo precisa multiplicar os cargos em comissão, que são de livre nomeação, para colocar pessoas de sua confiança e, então, governar. Logo, se estabelece um círculo vicioso, que se renova a cada processo eleitoral: campanhas caras, favores de campanha, promessa de cargos públicos, candidato eleito, nomeação de pessoas de confiança para cargos públicos e assim sucessivamente.

 

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO VOTO DISTRITAL PODERIA CONTRIBUIR PARA A REDUÇÃO DA CORRUPÇÃO?

Sim, porque o voto distrital estabelece uma relação mais próxima entre os políticos e os eleitores. O eleitor pode controlar o seu representante. O território eleitoral é dividido em tantos distritos quantas forem as cadeiras a serem preenchidas no Parlamento, e cada distrito elege seu candidato pelo voto majoritário. Os distritos devem ter um tamanho compatível com a possibilidade dos eleitores manterem um contato estreito com seus representantes. Já o sistema eleitoral proporcional, adotado no Brasil, dá margem à corrupção, porque as circunscrições eleitorais são muito extensas, exigindo  altas quantias de dinheiro para a realização das campanhas. Então, os políticos eleitos acabam usando a máquina administrativa para fins partidários, como já referi, ou acabam “alugando seus mandatos”, trocando seu voto no Parlamento por favores. Como o Presidente precisa formar maioria no Congresso para aprovar suas propostas, e, devido à separação completa entre o Executivo e o Legislativo, essa maioria não advém do próprio sistema. Assim, ele (o Presidente) aceita a troca. Caso contrário, ele não governa.

 

QUE MENSAGEM O SENHOR GOSTARIA DE DEIXAR PARA OS ELEITORES QUE, EM MENOS DE UM ANO, TERÃO QUE ESCOLHER SEUS REPRESENTANTES?

Eu gostaria de dizer que estou convencido do diagnóstico dos problemas do Brasil: temos instituições políticas irracionais, inadequadas a nossa realidade social. Também estou convencido do remédio: precisamos separar Estado, Governo e Administração. A partir dessa reforma, as demais acontecerão naturalmente. 

 

As opiniões expressas na seção “com a Palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal O SÃO PAULO.
 

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