SÃO PAULO

POLITICA

Para além dos limites do Judiciário

Por Daniel Gomes
12 de julho de 2019

condutas homofóbicas e transfóbicas no Brasil passaram a ser enquadrados nos tipos penais previstos para os crimes de racismo (Lei 7.716/1989) desde 13 de junho

Os atos entendidos como condutas homofóbicas e transfóbicas no Brasil passaram a ser enquadrados nos tipos penais previstos para os crimes de racismo (Lei 7.716/1989) desde 13 de junho, após decisão de oito dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). 
Os magistrados julgaram procedentes os pedidos formulados na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e no Mandado de Injunção (MI) nº 4.733 para reconhecer a demora do Congresso Nacional em editar uma lei que criminalize os atos de homofobia e transfobia. A decisão será válida até que o Congresso assim o faça. 

Caberia ao Supremo definir a questão?
A Constituição Federal, no art.103, 
§ 2.º, não atribui ao Judiciário a função de criar leis diante de lacunas, mas de notificar o poder competente para editá-las: “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em 30 dias”.
No caso em questão, o Supremo adequou uma legislação em vez de notificar o Poder Legislativo sobre a aparente ausência de uma lei, embora no Senado já tramite o projeto de lei 672/19, para incluir as práticas homofóbicas entre os crimes descritos na lei do racismo.
A discordância com a decisão do STF levou o senador Marcos Rogério (DEM-RO) a apresentar o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 404/2019 para sustar os efeitos da medida. “No bojo dessas ações, o Supremo Tribunal Federal, sob o pretexto de preencher uma suposta omissão legislativa do Parlamento, legisla positivamente, indo de encontro a um dos postulados basilares do princípio da separação dos Poderes, qual seja, o de que ao Judiciário compete, tão somente, ‘legislar negativamente’, isto é, retirar do ordenamento jurídico os atos normativos nulos em face da Lei e da Constituição”, consta no PDL. 
Outro ponto observado no PDL é que, com a decisão, o STF “também ignorou que compete privativamente ao Congresso Nacional legislar sobre direito penal”. 
Cabe observar, ainda, que no inciso XXXIX do Artigo 5º da Constituição, “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. 

Ativismo judicial
Na avaliação do renomado jurista Ives Gandra da Silva Martins, “foi uma decisão equivocada do Supremo de decidir sobre essa matéria. Criar um tipo penal não é matéria do Supremo, é do Legislativo”, afirmou ao O SÃO PAULO. 
Doutor Ives pontuou que este é mais um caso de ativismo judicial do STF. No artigo “30 anos de Constituição e o protagonismo da Suprema Corte”, o jurista afirma que o protagonismo individual excessivo dos magistrados tem invadido a competência dos outros poderes e que “tal ativismo judicial é o grande elemento de insegurança jurídica e de instabilidade institucional por que passa o País”. Além disso, ele avalia que a judicialização da política levou “as correntes minoritárias a buscar no Judiciário forma de suprir a sua incapacidade de fazer prevalecer suas opiniões ou ideologias”. 

Liberdade da expressão religiosa
Em nota de 12 de junho, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reafirmou ser contra qualquer tipo de discriminação, mas que isso não significa se omitir a ensinar a sua doutrina de que o Matrimônio é a união entre o homem e a mulher. “Informar e orientar os fiéis sobre o Matrimônio, aconselhá-los em questões relacionadas à família e à conduta pessoal não pode ser considerado ofensa contra pessoa ou grupo”, manifesta-se a CNBB.
Na prática, há preocupação se, no âmbito da administração dos sacramentos e na transmissão da doutrina cristã, na qual há verdades de fé em confronto às ideologias e modo de vida LGBTI+, os clérigos e leigos poderiam ser acusados de homofóbicos.
A esse respeito, o colegiado do STF fixou o entendimento de que “a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”. 

Havia necessidade de uma lei específica?
Dom Ricardo Hoepers, Bispo de Rio Grande (RS) e Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e Família da CNBB, questiona a necessidade e intencionalidade de uma lei que proteja os LGBTI+.
“Há uma violência permanente contra as pessoas homoafetivas, mas com uma defesa exclusiva deste grupo, abre-se precedente de leis para outros. Acreditamos que as legislações devem contemplar a todos. Somos contra qualquer tipo de violência, mas uma legislação não pode se tornar objeto de polarização ou ser utilizada com um viés ideológico. Como Igreja, somos contra a violência, preconceito e discriminação”, enfatizou. 

Transmissão da fé em risco?
Doutor Ives Gandra disse à reportagem que a medida do STF não interferirá na liberdade religiosa. “Há o tratado Brasil-Santa Sé pelo qual o direito canônico é respeitado pelo direito brasileiro. Desse modo, não vejo qualquer risco para a Igreja Católica de continuar dizendo que o casamento é sempre entre um homem e uma mulher. Efetivamente, ela jamais será obrigada a fazer um casamento entre homossexuais”, afirmou, assegurando que nenhum clérigo que siga as orientações da Igreja poderá ser acusado de homofobia. 
Em um material explicativo fornecido à Diocese de Rio Grande (RS), o advogado Julio César Pereira da Silva indicou preocupação com alguns artigos da lei do racismo que podem colocar em risco a liberdade religiosa, como o artigo 20, que veda “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Para o advogado, “causa preocupação a intepretação que pode ser feita desse artigo, pois um juiz de primeiro grau poderá interpretar como excesso uma fala de um sacerdote, tipificando a conduta e condenando a pessoa que proferiu as palavras”. 

Autonomia das famílias
Também há incertezas sobre como ficará a autonomia das famílias para orientar ou auxiliar os filhos a mudar hábitos de vida, caso se declarem homossexuais. 
A filósofa e jurista Ângela Vidal Gandra Martins, secretária nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirmou à reportagem que “o respeito a qualquer pessoa, incondicionalmente, deve ser fomentado socialmente, e a proteção de qualquer ser humano em perigo é um dever do Estado. Porém, no caso em questão, há também valores morais envolvidos - o que não se identifica com discriminação - e o Estado deve respeitar a liberdade de consciência. Penso que haverá muitas dificuldades jurídicas nos casos concretos. Porém, no exemplo dado, penso que não caberia uma intervenção direta no modo de conduzir a educação dos filhos de acordo com as convicções dos pais”.

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