VATICANO

Exortação apostólica Querida Amazônia

O ‘sonho social’ do Papa Francisco para a Amazônia

Por Filipe Domingues Especial para O SÃO PAULO
25 de fevereiro de 2020

O SÃO PAULO publica uma série de quatro análises com chaves de leitura para a exortação apostólica Querida Amazônia

Vatican Media

Uma carta de amor à Amazônia. Assim definiu o Cardeal Michael Czerny a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia, do Papa Francisco, publicada no dia 12. O documento é uma reflexão do Papa após o Sínodo para a Amazônia, a assembleia especial do Sínodo dos Bispos dedicada exclusivamente à região amazônica.
A enorme diversidade de povos tradicionais, a presença da Igreja há mais de 400 anos na região, o surgimento de grandes cidades, as migrações, as comunidades isoladas, as disputas por território e o esgotamento das riquezas naturais colocam a Amazônia no centro de um intenso debate internacional.
O que se faz da Amazônia hoje determinará que tipo de sociedade global seremos amanhã. Por isso, o Papa apresentou seus quatro “sonhos” para a Amazônia nessa “carta de amor”. O primeiro deles é social, o segundo é cultural, o terceiro é ecológico e o quarto, eclesial.
Em uma série de quatro análises, O SÃO PAULO apresenta chaves de leitura para essas categorias, começando pelo sonho social.

CRISE ECOLÓGICA É TAMBÉM SOCIAL
Com o auxílio da ciência, o Papa Francisco faz um diagnóstico importante: os problemas ecológicos e os problemas sociais têm a mesma raiz. Ele afirmava isso já em sua Encíclica Laudato Si’, de 2015.
Esse alerta para o mundo se repete com força em Querida Amazônia. A crítica a um modelo econômico que explora a natureza de maneira desenfreada, priorizando o lucro sobre a “casa comum”, o planeta Terra, é a mesma contra a perpetuação das desigualdades sociais.
O “clamor da terra” é, também, “o clamor dos pobres”, diz ele (QAm 8). Os povos nativos e os mais pobres são os mais afetados pela destruição da natureza, que acentua os desastres naturais, a perda de seus territórios, as migrações forçadas, a pobreza, o tráfico de pessoas, o crescimento das periferias de grandes cidades e a corrupção (QAm 10,21).
Por isso, o Papa Francisco sonha “com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos originários, dos últimos, em que sua voz seja escutada e sua dignidade seja promovida”. Da mesma forma, não basta defender a natureza e esquecer a vida humana. “Não nos serve um conservacionismo que se preocupa com o bioma, mas ignora os povos amazônicos”, escreve (QAm. 7, 8).

UM ESPAÇO A SER OCUPADO?
Por trás da promessa de desenvolvimento da Amazônia, que, na verdade, leva dor e sofrimento aos povos locais, está uma concepção errada de que a Amazônia é “um espaço vazio a ser ocupado”, afirma o Papa Francisco.
Em Querida Amazônia, ele observa que a Amazônia não é “uma riqueza bruta que deve se desenvolver” e tampouco “uma imensidade selvagem que deve ser domesticada”. Pelo contrário, é necessário respeitar a presença e as tradições dos povos nativos e as terras que a eles sempre pertenceram (QAm 12,13).

DIREITO DOS POVOS
O Papa Francisco dá voz aos povos indígenas ao repetir um apelo que é comum entre os que defendem seus interesses: qualquer iniciativa ou projeto que envolva a Amazônia deve, necessariamente, consultar os povos tradicionais, principais “interlocutores” da região (QAm 25).
“Aos empreendimentos, nacionais ou internacionais, que causam dano na Amazônia e não respeitam o direito dos povos originários ao território e à sua demarcação, à sua autodeterminação e ao consentimento prévio, há que dar-lhes os nomes que lhes correspondem: injustiça e crime”, denuncia Francisco (QAm 14).
A privatização da água potável, a exploração ilegal de madeira, a extração de petróleo, a construção de grandes estradas e usinas hidrelétricas, o garimpo, a expansão da fronteira do agronegócio, essas e outras atividades, quando realizadas fora da lei e com a conivência dos governos, “contaminam o ambiente e transformam indevidamente as relações econômicas, e se convertem em um instrumento que mata” (QAm 14).
Ele lembra que a sociedade ocidental pode aprender com os indígenas a ter “um forte sentido comunitário” (QAm 20), em suas relações humanas, ritos e celebrações.

DESIGUALDADE EXTREMA
Alguns dos donos do poder chegam a tirar a vida daqueles que se opõem à expansão de seus negócios ilegais, provocando também incêndios florestais intencionais e subornando políticos. As disparidades de poder na Amazônia entre os poderosos e os pobres criam “novas formas de escravidão”, diz o Papa.
Essas mazelas são acompanhadas de violações dos direitos humanos, do tráfico de pessoas, especialmente das mulheres, e do tráfico de drogas. “Não podemos permitir que a globalização se converta em um novo tipo de colonialismo”, denuncia (QAm 14).
“A disparidade de poder é enorme, os fracos não têm recursos para se defender. Enquanto o ganhador continua levando tudo para si, os povos pobres permanecem sempre pobres, e os ricos se fazem cada vez mais ricos”, afirma o Santo Padre (QAm 13).
Ele também reconhece que, muitas vezes, membros da própria Igreja estiveram metidos nos jogos de poder. No período colonial, foram cometidos erros históricos de injustiça e crueldade. O Papa admite que, por vezes, “o trigo se misturou com o joio” e foram cometidos “crimes contra os povos originários durante a chamada conquista da América” (QAm 19). Por esses erros ele, mais uma vez, pediu perdão. 

SÃ INDIGNAÇÃO
A primeira reação necessária a todos os problemas sociais da Amazônia, defende Francisco, é a indignação. “É necessário indignar-se […] Não é saudável que nos acostumemos com o mal”, diz o Pontífice. 
No entanto, “ao mesmo tempo que deixamos brotar uma sã indignação, recordamos que sempre é possível superar as diversas mentalidades de colonização para construir redes de solidariedade e desenvolvimento”, respeitando o meio ambiente e as diferentes culturas da Amazônia (QAm 17).
Francisco também recorda o valor dos missionários que se indignaram e chegaram à Amazônia, especialmente nas últimas décadas, deixando seus 
países e adotando um estilo de vida simples, levando o Evangelho aos que mais sofrem.
“No momento atual, a Igreja não pode estar menos comprometida, e é chamada a escutar o clamor dos povos amazônicos para poder exercer com transparência seu papel profético”, exorta o Papa (QAm 19).
Uma Igreja de rosto amazônico que acompanha os pobres é o sonho social do Papa Francisco para a Amazônia. Isso inclui ver a Amazônia livre da “discriminação e da dominação” entre seres humanos e, no lugar disso, “relações fraternas” e reconhecimento mútuo (QAm 22). Pois, se tudo está interligado, escutar o outro “é um dever de justiça” (QAm 26).

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