INTERNACIONAL

Testemunho de fé

A Igreja em tempos de epidemia: As pestes dos primeiros séculos

Por Gustavo Catania Ramos (Especial para O SÃO PAULO)
31 de março de 2020

Este é o primeiro artigo de uma série cujo objetivo será contar a história de algumas epidemias do ponto de vista cristão

Luciney Martins/O SÃO PAULO

A atual pandemia do novo coronavírus tem impactado diretamente a vida da Igreja e de seus fiéis. Questionamentos sobre o funcionamento de templos e as celebrações têm sido feitos, e, como se trata de uma situação não vivida pelas mais recentes gerações, os receios abundam. Entretanto, a Igreja, desde sua fundação, enfrentou diversas situações parecidas de epidemia e conseguiu, a partir de todos esses males, expressar o amor de Deus à humanidade atingida por surtos de doenças.

Por essa razão, conhecer a história da Igreja pode ser um bom antídoto contra todo e qualquer alarmismo e desespero. A história é uma grande mestra. Sem ela, podemos pensar que sempre enfrentamos algo novo e devemos a todo tempo “reinventar a roda”, quando o simples olhar ao que nossos antepassados fizeram pode iluminar e guiar nossa conduta.

A verdade é que epidemias sempre foram comuns na história. Quem não se lembra das aulas de História sobre a Peste Negra, que dizimou quase um terço da população europeia? Ou da gripe espanhola, que contaminou, no começo do século XX, 500 milhões de pessoas? Diversos outros exemplos podem ser dados, alguns mais graves que outros, como a epidemia de Ebola ou de poliomielite, uma das doenças infantis mais temidas até a metade do século passado. 

A Igreja sempre atuou diretamente no cuidado físico e espiritual de milhões de doentes em períodos de caos e foi, muitas vezes, a única a lhes dar consolo e esperança. Hoje, a sua missão continua a mesma, seguindo os passos de Jesus, que se identificou intimamente com os doentes e com os que sofrem.

Este é o primeiro artigo de uma série cujo objetivo será contar, em poucas linhas, a história de algumas epidemias do ponto de vista cristão, para podermos, com um olhar de fé mais profundo, enfrentar a atual pandemia e vermos nela uma oportunidade de crescer no amor e confiança a Deus. Começaremos com a epidemia de varíola e sarampo que abalou o Império Romano nos séculos II e III d.C.

O cuidado cristão aos doentes no começo do Cristianismo

Diversos historiadores e sociológicos atribuem o crescimento do Cristianismo no Império Romano à forma como os cristãos tratavam os doentes, principalmente em tempos de epidemia. Adolph von Harnack, historiador tcheco do século XIX, foi o primeiro historiador moderno a fazer essa associação. Mais recentemente, Rodney Stark, sociólogo americano ainda vivo, é um dos grandes defensores dessa tese, que defende no livro The Rise of Christianity (O crescimento do Cristianismo).

Esses pensadores argumentaram que o Cristianismo, em seu início, promoveu formas inovadoras de cuidado aos doentes bem como um suporte espiritual próprio aos que sofrem, porque o Cristianismo deu um sentido profundo ao sofrimento. Por meio deste, o fiel se associa a Cristo padecente e exercita seu amor a Deus e aos homens. Entretanto, o Cristianismo não concebe o sofrimento como eterno, mas uma realidade passageira que terá fim quando chegarmos ao Paraíso. Ao contrário do paganismo vigente à época no Império Romano, em que o sofrimento era visto, sobretudo, como uma forma de punição dos deuses, o Cristianismo ensinava que todos devem carregar sua cruz com amor.

Assim, o Cristianismo surgiu como uma grande resposta ao problema do mal e do sofrimento, resposta que, em tempos de epidemia, justificou a conversão de milhares de pessoas à nova fé, em detrimento das crenças pagãs.

Afora a questão doutrinal da justificação do sofrimento, o Cristianismo atraiu milhares pela forma como os doentes eram tratados. São Policarpo de Esrmina, bispo do começo do século II, já destacava o cuidado aos doentes como uma das principais tarefas da Igreja. Associações entre a imagem de Cristo e a de um médico abundaram nos primeiros séculos. “Há apenas um médico”, proclamou São Inácio de Antioquia no começo do século II, “(...) Jesus Cristo nosso Senhor”.

Os cristãos do primeiro século eram estimulados a tratar os doentes a partir de sua fé, que alinhava a atividade médica à atividade do próprio Cristo, que curava as doenças do corpo, e, principalmente, as doenças da alma. Nesse contexto, poderemos entender a epidemia que desgraçou o Império Romano nos séculos II e III.

As pestes dos primeiros séculos

A grande epidemia do segundo século foi a chamada Peste Antonina (165-180 d.C), que teve início no ano de 165 no Império Romano. Historiadores estimam que aproximadamente 5 milhões de pessoas morreram em todo o Império devido a esta peste. O historiador romano Dião Cássio afirmou que, no auge, 2 mil pessoas morriam por dia na cidade de Roma.

O famoso infectologista Hans Zinsser assim descreveu os impactos da peste: “Tantas pessoas morreram que cidades e vilas na Itália e nas províncias foram abandonadas e caíram em ruína. Aflição e desorganização foram tão severas que uma guerra contra os Marcomanni (um povo germânico) foi adiada. Quando, em 169, a guerra recomeçou, muitos soldados germânicos – homens e mulheres – foram encontrados mortos no campo de batalha sem ferimentos, porque morreram da epidemia”.

Depois de aproximadamente um século do fim desta epidemia, uma segunda atingiu o Império Romano. No seu auge, 5 mil pessoas morriam por dia em Roma somente. E, especialmente sobre esta última epidemia, há muitas fontes cristãs que a relatam. São Cipriano, bispo de Cártago, escreveu em 251, que “muitos de nós estamos morrendo dessa praga e pestilência”. Alguns anos depois, São Dionísio, bispo de Alexandria, escreveu em uma mensagem de Páscoa que “repentinamente chegou esta doença, algo mais assustador que qualquer desastre imaginável”.

Apesar de não serem certas as doenças, alguns historiadores associam as pestes à varíola e ao sarampo, respectivamente. Entretanto, independentemente da doença e dos números terríveis, o que se destaca nas pragas é a forma com que os cristãos trataram os doentes. A caridade cristã foi uma luz nessa época tenebrosa, a tal ponto que Rodney Stark atribui o crescimento da nova fé cristã no seio do Império Romano a ela. Os pagãos viam o amor com que os doentes eram tratados e eram movidos a se converterem.

São Dionísio de Alexandria descreveu em detalhes, no período da segunda epidemia, a dedicação cristã aos doentes e sua coragem diante da morte e da doença: “A maioria dos nossos irmãos demonstrou amor e lealdade em não se resguardar ao ajudar os outros. (...) Cuidam dos doentes sem pensar no perigo e alegremente deixam a vida com os doentes depois de se infectarem (...) Os melhores de nossos irmãos perderam suas vidas dessa maneira. Um grande número de presbíteros, diáconos e leigos ganhou grande louvor, resultado de uma grande piedade e de uma fé firme, morte que se assemelha em todos os sentidos ao martírio”.

Quando os cristãos agiram heroicamente, “os pagãos agiram da maneira oposta”. De acordo com São Dionísio, pessoas sem a fé cristã “afastavam aqueles com os primeiros sinais da doença e deixavam de seus entes mais queridos. Eles até os jogavam meio mortos nas estradas e tratavam os corpos como lixo, para evitar o contágio”.

Exagerada ou não a diferença pintada por São Dionísio entre a atitude dos cristãos e a dos pagãos, seu relato demonstra a inabalável coragem e caridade dos cristãos. Essa atitude ajudou a dar bom testemunho da fé cristã e foi essencial para que o Evangelho fosse proclamado no seio do Império Romano. O Imperador Juliano, um século depois, incentivou que os pagãos também praticassem as virtudes cristãs, para evitar o crescimento da religião cristã. Segundo o imperador, o crescimento dos cristãos se deveu ao seu “caráter moral” e por sua “benevolência com os estrangeiros e cuidados com os túmulos dos mortos”.  

O intento do Imperador Juliano não prosperou, porque apenas alguns anos depois o Cristianismo se expandiu ainda mais e se tornou a religião oficial do Império Romano com o Edito de Tessalônica (380 d.C), do Imperador Teodósio I. Vemos, assim, no exemplo dos primeiros cristãos, como podemos ser luz num mundo infestado pela doença e, assim, levar tantos a Cristo.

(Com informações dos livros: The Rise of Christianity – Rodney Stark; e Healing in the History of Christianity – Amanda Porterfield)

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