SÃO PAULO

Daniela Arbex

A história do Hospital Psiquiátrico Colônia: Um holocausto brasileiro

Por Nayá Fernandes
05 de setembro de 2017

Daniela Abex, falou ao O SÃO PAULO sobre o livro "Holocausto Brasileiro"

Arquivo pessoal

Mineira de Juiz de Fora, Daniela Arbex é autora do livro “Holocausto Brasileiro”, que conta a história de um manicômio na cidade de Barbacena (MG). Publicado pela editora Geração, o livro já ultrapassou os 200 mil exemplares vendidos e foi eleito o Melhor Livro -Reportagem do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (2013) e o segundo Melhor Livro-Reportagem no Prêmio Jabuti (2014).
Baseado no livro, um documentário foi produzido com exclusividade para a HBO, em 2016, com exibição em mais de 40 países. Daniela tem mais de 20 prêmios nacionais e internacionais no currículo, entre eles três prêmios Esso, o americano Knight International Journalism Award (2010) e o prêmio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina (2009). Há 21 anos, trabalha no jornal Tribuna de Minas, em que é repórter especial.
Desde 1903 até a década de 1980, quando foi fechado, o Hospital Psiquiátrico Colônia ficou conhecido pelo genocídio de, pelo menos, 60 mil pessoas, com cerca de 70% delas sem um diagnóstico definitivo de doença mental.
Pelo telefone, Daniela conversou com a reportagem do O SÃO PAULO sobre o livro e a situação de institucionalização em que, ainda hoje, vivem muitas pessoas no Brasil. Uma das jornalistas mais premiadas da sua geração, Daniela prepara-se para lançar um novo livro que, segundo ela, “conta outro lado de uma história muito conhecida pelos brasileiros”. O livro será publicado pela editora Intrínseca.
A entrevista pode ser acompanhada também no programa “Ciranda da Comunidade”, da rádio 9 de Julho, que será transmitido no dia 4 de setembro, das 18h30 às 19h.

O SÃO PAULO – QUANDO VOCÊ COMEÇOU SUA PESQUISA SOBRE A HISTÓRIA DE COLÔNIA?

Daniela Arbex - Sempre trabalhei com denúncias de violação de direitos humanos no jornal Tribuna de Minas, onde trabalho há mais de 20 anos. No ano 2000, comecei a fazer uma série sobre saúde mental. Na época, foi uma denúncia muito vigorosa que resultou no fechamento de dois hospitais na cidade, e hoje não temos nenhum hospital psiquiátrico em Juiz de Fora [que foram substituídos por comunidades terapêuticas]. Mas, a história de Colônia, onde morreram 60 mil pessoas, era totalmente desconhecida para mim, e percebi que era também desconhecida para a minha geração.

E COMO NASCEU O LIVRO?
O fato de essa história ser totalmente desconhecida me impactou muito. Então, quando decidimos que isso poderia ser um livro, depois de ter a série publicada pelo jornal condecorada com o Prêmio Esso, tive acesso a uma série de fotografias tiradas há mais de 50 anos, em 1961, pelo fotógrafo Luiz Alfredo, da revista Cruzeiro.

Eu queria encontrar sobreviventes, mas não quaisquer sobreviventes. Eu queria aqueles fotografados 50 anos antes e senti que precisava encontrá-los pessoalmente. Não foi fácil chegar até aquelas pessoas, mas quando eu comecei a encontrá-las, percebi o quanto aquela era uma história grandiosa.

Durante um ano, eu passei todos os fins de semana longe de casa e viajava para Barbacena para entrevistar as pessoas. Éramos Deus, o gravador e eu. Foi um processo muito difícil. Vivi a aflição de ver que as pessoas estavam morrendo e, a cada notícia de uma nova morte, pensava que a história daquela pessoa estava morrendo com ela.

COMO VOCÊ ENCONTROU ESSAS PESSOAS? COMO FOI A RECEPTIVIDADE DELAS?
A maior parte dos sobreviventes estava em Barbacena, alguns em Belo Horizonte (MG). Muitas delas têm diagnóstico de doença mental, porque penso não ser possível uma pessoa passar por uma institucionalização por 30 ou 40 anos e sair de lá como entrou.
Eu não tive dificuldade para falar com os sobreviventes, porque eles queriam falar. Foi a primeira vez que alguém os procurou para dar voz a eles e era perceptível que estavam ansiosos para contar suas histórias.
Por outro lado, tive dificuldade de falar com os funcionários e ex-funcionários do Hospital, porque eles se sentiam ameaçados. Em alguns casos, eu voltei na casa das pessoas cinco vezes, e só na última vez a pessoa conseguiu perceber o tamanho da tragédia da qual participou.

PODEMOS FALAR QUE O LIVRO TROUXE A QUESTÃO PARA DISCUSSÃO NO PAÍS?
Sim, o livro colocou de volta no centro da agenda pública brasileira a questão do tratamento e do atendimento oferecido pelo Estado Brasileiro às pessoas com doença mental ou com algum tipo de deficiência. Esse livro mudou muito o olhar das pessoas em várias áreas. Ele foi adotado por faculdades de Medicina, Psicologia, Direito, Sociologia e está ajudando a formar uma nova geração com um olhar crítico para essas questões.
É preciso criar modelos que possam substituir o hospitalar. Que sejam lugares inclusivos. Temos muitas experiências bem-sucedidas que mostram o quanto é importante resgatar os vínculos sociais das pessoas e, de alguma forma, resgatar a história dessas pessoas, porque temosuma dívida histórica com elas.
É um desafio enorme, não há uma única resposta, mas é importante não criar outros tipos de manicômios. Toda vez que usamos a força para obrigar alguém a fazer alguma coisa, o resultado dificilmente será satisfatório. Eu vejo que precisamos mudar, mudamos já muito, mas ainda existe um longo caminho a ser percorrido.

E AS PESSOAS QUE SAÍRAM DE HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS?
Todos nós temos algum familiar ou conhecemos alguém que sofre de doença mental. E temos também esse exército de pessoas que passaram por experiências de serem hospitalizadas e agora precisam de lugares que as acolham. As residências terapêuticas cumprem esse papel de ajudar as pessoas que não têm para aonde ir. Nas comunidades, as pessoas vivem experiências simples, como arrumar seu próprio armário, apagar a luz e não esperar o momento em que a luz será apagada, escolher o que comer.

EM BARBACENA, HÁ UM MUSEU ONDE ANTES HAVIA O HOSPITAL COLÔNIA?
Sim, mas, ainda assim, a cidade de Barbacena continua dividida. Há grande resistência das pessoas de terem sediado essa história, mas eu insisto que essa não é uma vergonha para Barbacena, mas para o País. É uma vergonha para todos nós.Existem, ainda, cerca de cem pacientes remanescentes de Colônia, uma boa parte continua hospedada no antigo hospital, que tem, hoje, uma proposta diferente de trabalho. Em Barbacena, há 30 residências terapêuticas, para uma cidade de 200 mil habitantes. É um dos municípios brasileiros com o maior número de residências terapêuticas.

SE HOUVE DENÚNCIAS À ÉPOCA, POR QUE ELAS NÃO SURTIRAM RESULTADOS?
Foram dois os momentos na história em que as denúncias aconteceram de forma vigorosa: na reportagem de 1961, publicada pela revista Cruzeiro, com as fotos de Luiz Alfredo, e em uma reportagem de 1979, no jornal Estado de Minas. Mas, quando passou o calor da denúncia, as pessoas esqueceram. No livro “Holocausto Brasileiro”, foi a primeira vez em que os sobreviventes puderam falar e são testemunhos reais de pessoas que viram e viveram tudo aquilo.

E PARA VOCÊ, COMO JORNALISTA, COMO FOI ESCREVER SOBRE A HISTÓRIA DE COLÔNIA?
Impossível entrar numa história e sair dela da mesma forma que você entrou. O Holocausto foi um trabalho muito complexo, que mexeu com muitos sentimentos e tristezas, que mexeu com o que existe de melhor e de pior no ser humano. Eu falo sempre que, por mais que eu tenha vivido dificuldades para fazer, nada do que eu passei chega aos pés do que eles passaram. Então, me deu muita dor, mas também muita alegria ter sido porta voz destas pessoas. De elas terem confiado a mim suas histórias.

As opiniões expressas na seção “Com a Palavra” são de responsabilidade do entrevistado e não refletem, necessariamente, os posicionamentos editoriais do jornal O SÃO PAULO.

Para pesquisar, digite abaixo e tecle enter.