Espiritualidade

Reflexões em tempo de pandemia

A cena da “tempestade acalmada” (Mt 8,23-27; Mc 4,35-41; Lc 8,22-25) é iluminadora para estes dias de pandemia. Nela, Jesus convida os seus discípulos a atravessarem um lago, em uma barca, em direção à “outra margem”. Durante este percurso, sobreveio uma tempestade e as águas revoltas começaram a inundar a embarcação, a ponto de pôr em perigo a vida de todos. Então, o grupo recorreu a Jesus com a súplica: “Mestre, Mestre, estamos morrendo”. E Jesus apaziguou os ventos e as ondas (Lc 8,24).
Esta passagem dos evangelhos é iluminadora para os dias atuais, quando um vírus contra o qual não encontramos defesa tem imposto sofrimento e dificuldade à caminhada da humanidade, escancarando a fragilidade da vida humana e da própria civilização. Mesmo que a palavra de ordem ainda seja a luta contra esta epidemia, não se pode descuidar das melhores lições deste contexto incomum, na esperança da superação da dificuldade atual e, chegada à “outra margem”, para a retomada da vida na saúde e paz.
Inicialmente, os efeitos devastadores do vírus num grupo de infectados trazem à tona a vida real em sua versão dramática, e o ato de curar implica tocar a carne humana sofredora e pensar nos idosos e pobres, mais sujeitos aos efeitos da crise instalada. Além disso, a tediosa reclusão e a devastadora interrupção de atividades criam cenários de visita da morte, antes vistos em ficções. Nessa realidade, ícones da atualidade, como o mercado e a virtualidade, revelam seus limites.
Por outro lado, esta ameaça à vida humana vem empenhando a todos e em todas as partes na mesma luta. Por mais que alguém veja uma oportunidade de lucrar, algo comum numa economia de mercado, este vírus obriga a entrar na mesma barca e abraçar a mesma causa. Nessa luta, o individualismo e a fome de ganhos se mostram ineficazes, triunfam a responsabilidade solidária, a alteridade, o cuidado do outro. É uma oportunidade para se extrair o que cada um tem de melhor em si.
Dessa forma, a luta contra este vírus obriga a trilhar o caminho em direção ao essencial, para o que realmente vale, a defesa e promoção da vida, em particular a vulnerável. E são alentadoras falas e ações de proteção aos pobres, de garantia da renda aos trabalhadores informais, o incremento da rede hospitalar em prol da população, e, mesmo, resguardar a vida humana, a ponto de parar quase tudo. 
O foco no cuidado da vida humana, imposto pelo momento, parece abrir frestas naquilo que o Papa Francisco denuncia como “globalização da indiferença”. Termo utilizado por ele ao se referir à insensibilidade diante do sofrimento e morte do ser humano, como também à exploração desmedida da Casa Comum, por uma dinâmica econômica que, além de não admitir parar, impõe o crescimento a qualquer custo. Assim, sem que as pessoas se deem conta, este sistema lhes rouba a ternura, a compaixão, a alegria etc.
Acolher o convite do próprio Mestre e se deixar conduzir para a “outra margem”, portanto, não significa esmorecer na luta contra a COVID-19. Pois, antes da crise viral, uma grave crise vital vinha sendo indicada por fenômenos, como: burnout e depressão; conflitos e violências; polarização político-ideológica; desigualdade e exclusão; fragmentação familiar; migrações; mudanças no clima; descuido com a Casa Comum etc. É preciso passar à “outra margem”.
Na “outra margem” está o Senhor ressuscitado, sempre presente na história e salvando a humanidade das situações de naufrágio. O seu gesto de amor incondicional tornou a cruz sinal de vitória sobre todas as formas de morte. O encontro com o Ressuscitado renova a esperança e a força para a retomada da vida de modo fraterno e justo.
Dessa Quaresma sem igual para a atual geração emana o convite à renovação da fé em Jesus Cristo, na vivência do seu Mistério Pascal que se avizinha.  
Votos de Santa Páscoa a todos!

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